domingo, 26 de fevereiro de 2012

Ainda as "Correntes d'escrita"

A corrente descrita (ou Portugal e os portugueses, em 2008 e depois)

«Onde estamos, afinal? Simbolicamente, não num sítio muito diverso do que era o nosso há vinte anos, mas desta vez e para sempre não sós» (Eduardo Lourenço, Vence, 23 de outubro de 2000)

Agradeço o convite para estar aqui convosco, na 13ª edição do Correntes d’Escritas, embora sinceramente algo me custe, sobretudo por mim. Com o vosso convite, só posso ganhar e ganhar muito. Significa-me um misto de oportunidade e deslocação, não geográfica, que é curta, mas pessoal, por não ser propriamente um escritor. Escritor, que para o Dicionário da Academia é a “pessoa que escreve obras literárias ou científicas”. Isto não sou nem nunca fui bastantemente, ainda que tenha escrevinhado e poetado alguma vez, ou seguido um percurso académico discente e docente, com os respetivos encargos de investigação e redação. Nada que justifique o título.

Mas tinha de aceitar, dada a simpatia e a insistência do convite, bem como a ocasião de homenagear a iniciativa. Era irrecusável e aqui estou, pedindo-vos desculpa pela breve ocupação do tempo. E o que aqui apresento, com adiantada escusa, não é alguma visão geral do momento português no que à vida literária diz respeito - coisa que não saberia fazer -, mas a rápida descrição de algo que tenho mais à mão e ao pé, ou seja da minha própria vida como “corrente”, palavra esta que, no mesmo Dicionário, significa “água que flui, que não está estagnada”.

Pode ter algum interesse, pelo jogo de circunstâncias internas e externas que me canalizaram sessenta e tal anos de vida – o Dicionário junta esse significado de “água canalizada” –, por entre grandes mudanças de civilização e cultura, da minha terra a Lisboa e de Lisboa ao Porto, da Universidade dos anos sessenta – setenta ao que ela é hoje; como ação e interrogação, e, muito especialmente dentro e bem dentro da mais antiga instituição do nosso território, talvez a mais marcante do seu devir, por adesão ou contraste – o catolicismo português.

Uma “corrente”, de facto, e como era o Douro antes das barragens, entre larguezas e estreitezas, entre calmas e rápidos, entre vidas e mortes, músicas e choros, riquezas e misérias, mas correndo sempre para um mar ao fundo. Pelo conjunto das circunstâncias, a corrente da minha vida foi ganhando o meio do rio e do seu fluxo, encontrando-me com outras mais certas e profundas, que verdadeiramente lhe definem o caudal. Um caudal que vem de muito longe, correndo para Ocidente como a nossa história portuguesa, enquanto havia terra a sulcar, treinando-se para lavrar o mar. Uma corrente que nos transporta a todos e, só por isso, também a mim. Esta posso descrever-vos brevemente: será “uma corrente descrita”.

Começou onde geralmente se começa, na família e em duas mulheres viageiras. Uma viajava por dentro e quase só por dentro; outra também por fora, sempre que podia ser, sendo muito menos do que quereria. A minha avó materna viajou neste mundo mais de cem anos e chamava-se “Aurora”; de Lisboa para o Porto e depois novamente, longamente, no sul. A minha mãe nasceu no Porto e foi cedo para o sul onde eu nasceria, ia ela pelos trintas. Chegou aos noventa e cinco e chamava-se “Sofia”.

A minha avó não gostava de viajar por fora. Enviuvou cedo e demorou depois numa quinta pacata, ao ritmo da noite e do dia, do dia e da noite, das estações do ano e dos ciclos agrícolas. Viajava sim por dentro, por dentro da sua grande casa e das constantes reparações que gostava de fazer, reduzindo os países e continentes aos espaços domésticos que remodelava à vez, assim pudesse. Morando numa casa cheia de recordações geracionais, não gostava de velharias, nem se entretinha com elas, aderindo de bom grado às novidades do tempo, viajando com o século - ou entre séculos, pois nascera em 1890 e falava de D. Carlos e D. Manuel II, Afonso Costa ou Sidónio Pais, como nós falamos de personagens de agora. Mas sem saudades pesadas, porque a viagem continuava.

A minha mãe cultivava mais a memória e lembrava espontaneamente episódios históricos. Sobretudo nossos, pois era medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista, bem pelo contrário. E tinha o maior gosto em viajar para fora, assim também pudesse. E pôde pouco, porque se espraiava em atividades domésticas, religiosas, cívicas e culturais; e porque acompanhou dedicadamente os últimos anos do seu marido e da sua longeva mãe. Mas com que alegria – dela e minha – percorremos o país em curtas viagens de verão, ficando eu ainda mais intimamente conjugado entre mátria e pátria. E já nos seus oitenta, aí foi ela contente, como a revejo em fotografias que vão da Noruega à Índia… E ai dos mais novos, bem mais novos até, que não lhe acompanhassem a passada.

Esta a minha “corrente” mais próxima, entre chegadas e partidas, princípios concretos e fins almejados. Uma alusão ainda, do que dizia a minha avó à minha mãe: “ – O que queres tu ver, que não tenhas já aqui: casas, estradas, rios e pontes?”. E também: “Viajar, tendo mesmo de ser, só pela alegria que terei ao voltar para casa”. A minha mãe sorria e largava. Por isso uma se chamava Aurora e a outra Sofia.

Posso entrever nisto mesmo a corrente mais larga do nosso Portugal comum. Digamos que as identificações acontecem geralmente assim, pois ganhamos em casa o que seremos depois, caseiramente aliás. De pequena para grande, assim cantava Camões a “casa lusitana”, não podendo ser doutra maneira. Entre ficar e partir, entre partir e regressar, estamos sempre nós, particularmente nós, os portugueses.

Talvez não tenha sido só por moda “renascente” que se ligou Lisboa a Ulisses, quando a Grécia e as coisas gregas ainda gozavam de “boa imprensa”, muito justificadamente gozavam. Pode ter sido por vislumbrar no lendário viajante antigo o bom emblema dum Portugal que entretanto se fizera assim, partindo, aventurando e regressando…

Há muito que me fizeram pensar deste modo. Apontei-o também, ocasionalmente, como em Portugal e os portugueses (Assírio & Alvim, 2008), ou em Isto realmente somos, os portugueses (In Porquê para quê? Pensar com esperança o Portugal de hoje, Assírio & Alvim, 2010). Tudo por insistência externa ou surpresa minha, mas com alguma aceitação dos outros, que só pode significar coincidência de espíritos e análises. E, isto sim, é culturalmente relevante.

No primeiro dos textos, lembrava a nossa matriz judaica, como “povo da promessa”, que assim mesmo se sentiu messiânico para o mundo. Não é algo exclusivamente nosso, mas foi-o muito especialmente, pela realização geográfica que lhe demos e pela desproporção do feito, de tão poucos para tanto: “Digo, por isso, que a relação que mantemos com Portugal é, fundamentalmente, bíblica. Olhamos Portugal como uma personalidade coletiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo muito anterior ao Romantismo. E a relação que mantemos com esse gostoso e custoso coletivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal” (Portugal e os portugueses, p. 10).

No segundo texto, lembrei como António Vieira assinalou o destino prévio de Santo António, muito propositadamente para indicar o nosso. António de Lisboa, entre Portugal, Marrocos e a Itália; António Vieira do Tejo ao Amazonas e do Amazonas ao Tibre, nos seus sermões de Roma; os portugueses sempre, querendo ou não querendo, mas obrigatoriamente assim.

A 22 de maio de 1670, Vieira ainda dizia o seguinte, de Santo António, dele mesmo e de nós todos: “Bem pudera Santo António ser luz do mundo, sendo de outra nação; mas uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português se não fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens é só privilégio da Graça; nos Portugueses é também obrigação da natureza” (cit. in Porquê e para quê?, p. 15).

Era preciso algum arrojo para dizer tal coisa num sermão pregado tão fora. Mas isso nunca faltou a Vieira, mesmo para insinuar que os portugueses, para brilharem em todo o lado, nem esperariam pela graça… E hiperboliza, em Santo António e por nós todos: “Saiu como luz do mundo e saiu como português. Sem sair ninguém pode ser grande […]. Assim o fez o grande espírito de António, e assim era obrigado a o fazer, porque nasceu português” (ibidem, p. 16). Ou ainda: “Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal; para morrer, o mundo” (ibidem).

Nisto era expansão natural; mas com o grave revês de não suportarem tanta luz, uns dos outros e ao perto. Mais: natureza tão luminosa em si mesma, além de irresistivelmente expansiva, seria inevitavelmente exilada, para se reencontrar à larga. Daí que escrevesse no ano seguinte, sempre em Roma: “… assim como Santo António foi obrigado a deixar Portugal, para ser Português, assim foi necessário que se tirasse dentre os Portugueses, para ser tão grande homem, e tão grande santo como foi” (ibidem, p. 17). Até aqui o tom parece heroico; mais abaixo, o remate nem tanto: “… luzir português entre portugueses, e muito menos luzir com a sua luz, é cousa muito dificultosa na nossa terra. Com a luz alheia vi eu lá luzir alguns; mas com a própria, […] nem santo António, quanto mais os outros” (ibidem). E a aceitação geral deste juízo, que quase adivinho em todos, evidencia bem que ainda somos nós, agora aqui, os portugueses.

Ao que vai dito, acrescentarei algo, dantes ou depois de Vieira. Como é o caso do célebre poema em que D. Dinis ironiza com os provençais, que trovavam muito bem, mas só pela primavera; sinal de que a “coita”, o cuidado amoroso, não era tão grande neles como no próprio. Vale a pena citá-lo: “Proençaes soen mui bem trobar / e dizem eles que é com amor; / mais os que trobam no tempo da frol / e nom em outro, sei eu bem que nom / am tam gram coita no seu coraçom / qual m’eu por mha senhor vejo levar”.

É um trecho muito coincidente com o que os portugueses pensam em geral de si mesmos. Recebem de fora as modas e os motivos – como era então o caso do canto provençal -, mas tudo se mergulha aqui noutra fundura, com os significados agridoces que sempre acrescentamos às saudades.

Recortado pela espada dum rei meio-borgonhês, expandido pela visão dum príncipe meio-inglês, regenerado de oitocentos para novecentos por vagas meio-francesas, quando não francesas de todo, das militares e políticas às literárias e ideológicas, Portugal foi e é ainda uma importação inculturada, nunca tendo terra nem recursos para ser doutro modo.

Isto mesmo poderíamos dizer também de outros e até generalizar. Mas a nossa geografia terminal ou o grande cais em que nos (re)tornámos, trouxeram-nos tanta terra e tanto mar que ganhámos esta atual condição de pátria de todos e ninguém – ou de ninguém para renascer de todos. Creio que Vieira e Pessoa aceitariam a caracterização. Sendo aqui profético o Romeiro de Garrett (Frei Luís de Sousa), como Portugal perdido e no entanto ali, quase pedindo um reconhecimento que o salvasse, passando do “ninguém” que se chamava ao merecido “alguém” que o despertasse, muito merecidamente despertasse. Estamos nisto tão perto dos últimos versos da Mensagem pessoana: “ … (que ânsia distante perto chora? / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro… / É a Hora!”.

Sim, saberiam trovar os poetas provençais, mas aqui trovava-se sempre; poderiam outros fazer algo em suas terras, mas daqui só se podia adivinhar tudo; poderiam outros manter grandes impérios, mas aqui só do nada se renasceria enfim.

Portugal culturalmente é uma teima, como geograficamente é uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir. Não é esta uma realidade unívoca, longe disso, e nem sempre foi positivamente considerada. Não foi só o século XIX que avaliou em baixa o desprezo da terra pelas miragens do mar. Do século XVI chegam-nos os lamentos bem reais de Sá de Miranda, por Lisboa nos despovoar os campos ao cheiro da canela das Índias. Ou as increpações poéticas do Velho do Restelo, contra as trocas do certo pelo incerto e do longe em vez do perto, por poder ou ganância, como não é de mais evocar em contraponto: “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! / Ó fraudulento gosto que se atiça / C’uma aura popular que honra se chama! / Que castigo tamanho e que justiça / Fazes no peito vão que muito te ama! / Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldade nele experimentas!” (Os Lusíadas, IV, 95).

Todos com razão certa e sabida. Mas teríamos certamente desaparecido, se não tivéssemos partido.

As coisas são diferentes agora, até onde o podem ser no mesmo povo e língua. Diferentes demais para que uma “forma mentis” de há seis décadas – voltando à corrente pessoal – as possa facilmente perceber. Porque se trata de “cultura”, e não apenas de mais informação, embora marcada pelo acrescento desta. Cultura, como aquilo que sabemos antes de aprender tudo o mais e continuamos a saber depois de esquecermos tudo o resto. Isso mesmo que faz cada um do seu tempo, mesmo que o calendário nos faça conviver enquanto estamos, diversos por dentro mas sincrónicos por fora.

Refiro-me a uma experiência de há poucos dias, que me despertou tal sentimento. Assistia a uma conferência sobre impossibilidades e possibilidades de emprego jovem. Intervenientes vários, todos entre os vinte e os trinta anos, com licenciaturas e mestrados. Um gestor, entre o Porto e Londres, agora cá sem deixar de estar lá, casado com uma psiquiatra e entusiasmado com o que faz e sobretudo inova. Uma jovem bióloga, inteiramente votada à cura da doença de Alzheimer, e por isso passando de escolas portuguesas para inglesas, mas voltando à sua terra com a frequência que as viagens aéreas de baixo custo hoje permitem: tem de estar lá, mas não deixa de vir cá. Um jovem empresário que, por maior expansão, se mudou daqui para Curitiba, onde está com a esposa e já três filhos, deslocando-se no Brasil como nos desafiava a viver na Europa, isto é, continentalmente. Este e o seguinte – um jovem produtor cinematográfico, a trabalhar em Londres com sucesso – intervinham diretamente no debate através do Skype...

Quando me coube a mim concluir algo, foi para constatar que o ficar e o partir se equacionam agora de modo muitíssimo diferente do que ainda há poucos anos nos caracterizava em geral. Mentalmente, ficámos marcados com os êxitos (alguns) e os traumas (muitos) das emigrações forçosas para o Brasil de Oitocentos ou para a França e Alemanha de há meio século e depois. Atualmente, sem com isso descuidar a indispensável viabilidade interna para as novas gerações, somos realmente surpreendidos por novidades grandes que, em termos de comunicação e informação, alteram profundamente as vidas, os trabalhos e as mentes.

E é por tanto ineditismo que o nosso tradicional “a ver vamos” ganha hoje outro palco e outro sonho, atualizando os versos de Sophia: “Navegavam sem o mapa que faziam / […] No silêncio das zonas nebulosas / Trémula a bússola tateava espaços / Depois surgiram as costas luminosas / Silêncios e palmares frescor ardente / E o brilho do visível frente a frente” (Navegações, VI).

Aliás, um dos jovens intervenientes no debate dizia que o trabalho português era geralmente apreciado “lá fora”, em especial pela capacidade de improvisar e resolver problemas inesperados. Dizia até que a anglofonia não tinha tradução exata para o nosso plebeíssimo “desenrascanço”. Mais uma originalidade lexical, para juntarmos ao que se diz sobre a “saudade”. E é possível que entre estas duas originalidades, tão prática uma, tão poética a outra, vá singrando a barca portuguesa, nas partidas e regressos que hoje somos.

É esta a corrente que me leva e tão singelamente vos descrevo. Vou singrando, entre auroras e sofias. Vamos.

D. Manuel Clemente

Bispo do Porto, vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

Conferência de abertura do Correntes d'Escritas 2012, Póvoa de Varzim, 23.2.2012


(Enviado por Auxília Ramos)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Exposição "Fernando Pessoa, plural como o universo"

Exposição sobre Fernando Pessoa na Gulbenkian

De 10 de fevereiro a 30 de abril, a Fundação Calouste Gulbenkian recebe a exposição "Fernando Pessoa, Plural como o Universo", concebida e organizada pela Fundação Roberto marinho e pelo Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, onde foi inaugurada em agosto de 2010, tendo depois sido mostrada, em março de 2011, no Centro Cultural Correios, do Rio de Janeiro.

O objetivo da exposição é oferecer o vastíssimo painel de uma vida-obra e de uma obra-vida, confrontando o visitante, etapa por etapa, com um relato dos acontecimentos biográficos na sua íntima relação com a formação e a criação literária do poeta.

A exposição tem uma forte componente multimédia e interativa: filmes, vozes e sons, poemas ditos, páginas de livros e poemas que, com um só toque do visitante, se alternam e desfolham. Inclui ainda documentos inéditos, pinturas e alguns objetos que nunca foram expostos em Portugal.

Paralelamente, e em colaboração com a Casa Fernando Pessoa, são realizadas atividades complementares, entre as quais um programa educativo que inclui visitas-jogo, visitas orientadas e oficinas de escrita e teatro, para escolas e grupos organizados.

Deixo alguns links úteis:




E o testemunho de Guilherme d'Oliveira Martins:


Fernando Pessoa, Plural como o Universo

A exposição «Fernando Pessoa, Plural como o Universo», no âmbito do Ano do Brasil em Portugal, resulta de uma iniciativa do Museu da Língua Portuguesa com o apoio das Fundações Roberto Marinho e Calouste Gulbenkian e apresenta-nos o multifacetado autor português como um dos símbolos do século XX. Os seus escritos são uma oportunidade extraordinária para compreendermos a relação do poeta com o mundo e a sua intuição genial para no-la revelar a partir de diversas perspetivas e personalidades.

 
SINGULAR LEITURA DO UNIVERSO

Fernando Pessoa representa o seu tempo de um modo singularíssimo, ligando a leitura do universo à circunstância de ser português – esse curioso casamento entre a história de um povo que o escritor procura interpretar e uma reflexão cosmopolita e universalista, que assume com todas as consequências, é uma característica única, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica, que não pode ater-se a uma cultura particular. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade própria é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço no fecho do seu imprescindível «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que tantas vezes encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é sempre complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige sempre a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida originalmente numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo como cultura de várias línguas e língua de várias culturas. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Caeiro, Reis, Campos e Soares) corresponde, assim, a uma curiosa representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa, e sem ligação à espiritualidade da comunicação. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença. No entanto, diálogo obriga a que cada um e cada cultura se afirmem tal como são, sem a tentação de se dissolverem mutuamente. Por isso mesmo Caeiro, Campos ou Reis são profundamente diferentes, e Fernando Pessoa, ele mesmo, tem uma perspetiva própria e diferente sobre a vida e o mundo.

A CONSIDERAÇÃO DOS MITOS

«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. E António Quadros disse que «mais perto andaremos do pensamento de Fernando Pessoa» se virmos os heróis da «Mensagem» como «protagonistas de um macromito, com seus símbolos e cifras, o mito do Regresso ao Paraíso, dentro do qual se desenvolvem os micromitos de um Portugal – eleito de Deus, em ação profunda no duplo plano do ideal cavaleiresco e do inconsciente coletivo nacional…». Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Nesse sentido, compreende-se que os amigos presencistas de Pessoa tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético do autor. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Mas será Eduardo Lourenço, ainda ele, quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870 e em especial de Oliveira Martins, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo seareiro. A heterodoxia do autor de «O Labirinto da Saudade» tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, mas sobretudo pretende obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na riqueza das suas idiossincrasias. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista. Diz Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. Fernando Pessoa procura transcender, reunir, completar («seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro»). Segundo Quadros trata-se de uma catarse, pela qual podemos, a um tempo, encontrar o poeta em toda a sua riqueza interior multifacetada, bem como entendê-lo em toda a sua capacidade de se revelar numa ascese emancipadora. Anselmo Borges fala do «seu balancear constante, triturante, paradoxal e contraditório entre a Presença e a Ausência».

O ENTENDIMENTO DOS SÍMBOLOS

Há um pequeno texto de Fernando Pessoa, em «Sobre Portugal», que trata do provincianismo. Muitas vezes tem sido referido e citado, talvez como um juízo definitivo, que não é. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. Não importará tanto ver circunstancialmente o que significa cada uma destas preocupações. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância. É fundamental sermos capazes de nos vermos projetados no espelho da crítica. A poesia encarrega-se de perscrutar diversos caminhos. Mais do que encontrar soluções, que não cabem à arte, trata-se de iluminar e de ajudar a ver. Impõe-se, porém, cuidar do entendimento dos símbolos, o que obriga à consideração, segundo Pessoa, da simpatia, da intuição, da inteligência, da compreensão e do conhecimento transcendente. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo. Tem de ser capaz de ver o que está para além dele. Tem de saber interpretá-lo. Tem de o entender. E tem de apreender o seu sentido e significado. Eis por que a criação cultural se torna fundamental, por contraponto às ilusões do provincianismo…
Guilherme d’Oliveira Martins

(Enviado por Auxília Ramos)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Ler e (re)criar

Mais um trabalho de recriação literária, no âmbito da motivação para o estudo do texto poético. Os alunos, tomando contacto com a primeira manifestação literária do lirismo português, escolheram uma cantiga de amigo e imaginaram, a partir dela, uma página de diário ou uma carta, dada a natureza biográfica e intimista das cantigas de amigo galego portuguesas.

  1.
Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos todos lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Pêro de Viviaez, CV 336, CBN 698

 
Portus Cale, 1 de fevereiro de 1342

Querida prima Josefa,

Antes de mais, queria pedir-te perdão pelo incumprimento da minha promessa. Assim que te mudaste para Barcara Augusta, jurámos manter contacto, porém, só agora te escrevo esta carta para te contar todas as novidades e reatar a nossa relação. Tenho estado muito ocupada a tratar das nossas terras e a fazer os vestidos para a Rainha, pelo que não tenho tido oportunidade para te escrever.

Como sabes, no domingo passado, festejou-se o São Simão de Val de Prados, uma romaria muito conhecida por ser um importante ponto de peregrinação. Eu e as minhas amigas fomos à festa, acompanhadas das nossas mães, já que é impensável ir a qualquer lado que seja sem a supervisão da mãe. No entanto, as nossas intenções eram bem distintas. Enquanto as mães pretendiam rezar e cumprir as promessas que haviam feito, acendendo velas aos santos, eu e as minhas amigas tínhamos uma outra intenção, encontrar os rapazes.

Como também sabes, ainda estou solteira e este facto atormenta-me um pouco. Bem, mas, se refletirmos um pouco, posso afirmar que na teoria estou solteira, mas na prática não...

Não estava com grande ânimo para ir à romaria, uma vez que tenho tido muito trabalho e tenho andado estafada. No entanto, o facto de pensar que iria encontrar aquela pessoa que me acelera o coração, restabeleceu-me, de imediato, as forças. Dançar diante dele para me exibir não é coisa que se faça, eu sei bem, mas as minhas amigas incentivaram-me a fazê-lo. Será que fiz mal em dar um passo em frente?

Fico a aguardar uma resposta e espero que também me contes novidades.

Despeço-me com muito respeito e carinho,
Carlota Esteves

Ana Lídia, 10A


2.



Ai madre, ben vos digo,
mentiu-mi o meu amigo,

sanhuda lh’ and’ eu.

,


Do que mh ouve jurado

pois mentiu per seu grado,

sanhuda lh’ and’ eu.
,


Non foi u ir avia,

mais ben des aquel dia

sanhuda lh’ and eu.

,


Non é de mi partido,

mais, por que mi há mentido,

sanhuda lh’ and’ eu.

PERO GARCIA BURGALÊS


Mãe,



Nem acreditará! Sabe o meu amigo? Aquele que iluminou os meus dias mais sombrios, que foi o meu oásis no deserto da solidão? Sim, é esse mesmo em que está a pensar. Ele mentiu-me!

Ando furiosa com o mundo, comigo e com Deus! Jurou-me ser honesto e, agora, traiu a minha confiança! Odeio este sentimento de indignação. Odeio sentir-me não merecedora da sua verdade. Sabe, não me irrita o facto de ter partido, irrita-me, sim, ter mentido sobre para onde ia.

Já não sei nada dele desde aquele dia. Ando preocupada, mas, sempre que me recordo dele, a raiva reaparece.

Preciso de si e das suas palavras tranquilizadoras para a minha alma. Responda-me o quanto antes, por favor.


Da sua querida filha,

Bianca



Enviado por Auxília Ramos


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012