domingo, 30 de janeiro de 2011

Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner






O Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner, promovido por iniciativa de Maria Andresen de Sousa Tavares, decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 27 e 28 de Janeiro, e reuniu um elenco notável de oradores – estudiosos, investigadores, ensaístas lusófonos e estrangeiros, poetas – em torno da poesia de Sophia. Sophia – nome predestinado, no dizer de Eduardo Lourenço, significa “uma sabedoria mais funda que o próprio saber”.

O meu testemunho, enquanto participante, não pretende esgotar a apreciação de todas as intervenções, nem avaliar o conteúdo e o valor científico e académico das mesmas, mas, tão somente, partilhar o que mais me tocou na intensidade destes dois dias. Acima de tudo, pretendo assinalar que o grande número de participantes neste colóquio é um manifesto sinal de esperança para todos nós, portugueses. Num momento em que, cíclica e fatalmente, o país parece mergulhado numa “austera, apagada e vil tristeza”, a voz poética e ética de Sophia fala mais alto, mostrando a grandeza de uma língua e a capacidade transfiguradora e criadora da poesia. Essa manifestação de esperança foi reconhecida por Eduardo Lourenço que, num discurso emotivo e lúcido, encerrou esta notável homenagem à poesia de Sophia, que, segundo ele, aconteceu ainda “a tempo”.
Partilho, então, convosco, os olhares e as leituras sobre/da palavra poética de Sophia, adoptando um critério assumidamente subjectivo, porque convergente com o meu modo de ler e interpretar Sophia.

Richard Zenith, um dos mais notáveis estudiosos da obra poética de Fernando Pessoa, parte do poema “Ressurgiremos” para afirmar que a poesia de Sophia é “assertivamente cristã”, revestida de um catolicismo inicial, que remonta ao seu sentido primitivo, porque nada preocupada com dogmas. No entanto, no mesmo poema, são claras as alusões aos deuses pagãos que estabelecem um certo dialogismo com o universo cristão: Delphos, homóloga pagã de Jerusalém? Lugar de ressureição que substitui a própria Jerusalém?

José Manuel Mendes, representante da Associação Portuguesa de Escritores, referiu-se ao empenhamento de Sophia no ressurgir desta associação, em Julho de 1973, por ela considerada “lugar de encontro e de confronto”. O orador referiu-se ao empenhamento político-social da poetisa, à coexistência da ética e da poética e evocou uma série de considerações e palavras suas que reproduzo e que dispensam comentários: “É a poesia que me implica, que me faz ser no estar e me faz estar no ser. É a poesia que torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda implicação do homem , no real, a poesia é necessariamente política – e fundamento da política.”; “Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é revolucionária.”; “Um provérbio Burundi diz: Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba.”; “o poeta busca a relação verdadeira com os outros homens”, “a política não pode nunca programar a poesia”…

Isabel Almeida, Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, iniciou a sua comunicação intitulada “Sophia e Camões – se nenhum amor pode ser perdido”, partindo do pressuposto de que a poesia também se faz de poesia. Lembrando os poemas de Sophia que evocam a figura de Camões – “Gruta de Camões”, “Soneto à maneira de Camões”, “Camões e a tença” – a oradora recriou um singular diálogo entre os dois poetas que se estendeu à epopeia camoniana, reconhecendo que há na poesia de Sophia ecos de epopeia. Sublinhou que é em Macau, em 1977, aquando da Celebração do Dia de Camões, que Sophia, no seu discurso de participação, nos desvenda a sua descoberta de antiquíssimos ideais que ela partilha com o grande poeta. Ele é e será, então, o vate com quem aprende a ver.

Com António Tabucchi, escritor italiano de Literatura Portuguesa na Universidade de Pisa, embarcámos numa viagem à Grécia – Delphos, Knossos – onde, segundo confessa, a evocação de Sophia não aconteceu logo à chegada, mas onde a geometria, o rigor e a ética dos lugares em tudo se assemelhavam à “elegância” que emanava da figura de Sophia. Curiosamente, o orador explica-nos que, ao viver a aventura atlântica, Portugal esqueceu a baía mediterrânica, onde se localizava a Grécia, lugar de exacta geometria. Para o orador, foi Sophia quem se lembrou da Grécia e foi aí que ela “descobriu” que o que acontecia ao seu país já tinha acontecido na Grécia – consciência de uma tragédia, da qual Salazar – Creonte – é figura central. Sophia percebera Portugal em Delphos.

Clara Rocha, na qualidade de herdeira do espólio do pai, Miguel Torga, interpreta, de forma comovente e comovida, as vozes de Torga e Sofia que se elevam de excertos da correspondência entre ambos trocada, assinalando, sobretudo, o modo como um viu, no outro, o rosto da poesia. Nessa sua interpretação, atrever-me-ei a dizer, nessa sua narração dramática, a professora universitária, dirigindo-se a toda a plateia, mas com o olhar inequivocamente centrado em Maria Andresen, recordou vários episódios e circunstâncias que marcaram esta sólida relação dos dois poetas e amigos: a sintonia de uma poesia de inflexões pessoais, a valorização da dicção clara e rigorosa da palavra poética, a imprescindibilidade da figura do outro na formação da sua própria identidade, mas também a necessidade da obra de cada um na formação da identidade colectiva.

Para concluir esta partilha, não poderia deixar de referir a “Mesa dos Poetas”, moderada por Miguel Sousa Tavares, que também testemunhou o valor que a palavra poética dita tinha para Sophia, ao recordar um episódio da sua infância: a sua actuação de “diseur”, num sarau do colégio que frequentava, levou a mãe a abandonar a sala… Obviamente que esta íntima memória animou o auditório, mas destaco, do conjunto dos poetas que o rodeavam, as figuras de Nuno Júdice e Ana Luísa Amaral. O primeiro testemunhou que a sua especial atenção ao som da palavra e da sílaba poéticas a deve a Sophia. A segunda recorda que, na sua infância, no seu angustiado “exílio” no Porto, descobriu Sophia, nas páginas de “O Cavaleiro da Dinamarca”. O título do livro de Sophia prometia-lhe a aventura de um possível regresso ao seu espaço natal, resgatada por um cavaleiro que ela iria, certamente, encontrar à medida que a leitura do livro avançasse. Ficou, também, a promessa de Ana Luísa de me enviar o seu poético texto.

Finalmente, deixo o convite para visitarem a exposição patente na Biblioteca Nacional até 30 de Abril e cuja apresentação está aqui: http://www.bnportugal.pt/ ou consultarem o número de Janeiro da Revista Colóquio/Letras em parte dedicada a Sophia de Mello Breyner Andresen.
Fica também a reportagem da SIC:



Auxília Ramos

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

"La Cathédrale Engloutie"


Para ler com banda sonora (aqui)
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O silêncio é profundo, espesso e já ensurdecedor. O silêncio torna-se leve, pouco a pouco, e tudo o que nos parecia ensurdecedor se transforma. Aqui, os peixes são como murmúrios de tempos outrora felizes. Caminham entre os corais de mil cores esverdeadas, e entendo-lhes o sorriso de um mundo fascinante de calma aquática. Mais longe, no céu, uma espécie de grande pérola ilumina este ilusório abismo, e cresce, cresce. Na tona da água, um velho risonho, de remos enrugados, segue a sua viagem, sem destino concreto, sem qualquer outros sonhos a desejar, como se a vida já não lhe chegasse. Cerca com os olhos gastos de tantas tristezas do mundo os peixes e os seus sorrisos. Talvez pense que podia ser um deles, não um homem outrora feliz, mas um peixe agora feliz.
O silêncio é profundo, espesso e já ensurdecedor. É leve, pouco a pouco. Os peixes caminham entre destroços de um lugar de murmúrios de tempos outrora felizes. Iluminam-se primeiro alguns pináculos, aparecendo do abismo, depois o pigmento de um mundo inteiro. A Catedral submersa! Toda a vida oceânica se enche de um manancial de abundância, numa explosão colorida de breves feixes de luz, um arco-íris desordenado e marítimo. A terra move-se, em torno, e cresce, cresce. Os rochedos rasgam-se, as plantas esvoaçam, os crustáceos rangem e as baleias embalam o ritmo. A agitação das águas afaga o barco do pequeno velho. Este, sem mais demoras, rema tanto quando pode como se adivinhasse o seu destino. Do seu bote avistam-se já esses pináculos, e toda a Catedral se ergue do mar, trazendo consigo a agitação aquática que a envolve. A Catedral Submersa regressa ao sítio onde outrora fora feliz. E o velho pára, olha em redor, sorri… e regressa aos tempos outrora felizes. E o velho pára, uma vez mais, e reconhece os tempos em que outrora fora feliz. Num breve segundo que ficou suspenso, a Catedral envolve-se no seu próprio canto e retorna ao mar como que sugada rapidamente. O velho risonho, entre as ondas, torna a si e tenta, num último esforço, remar. Para um homem de olhos gastos, as ondas são fortes rivais. E depois, num momento de lucidez, deixa-se ficar, permanece quieto. Pensa em tanto quanto pode, fecha os olhos e levanta-se. O mar engole tudo.
Uns dias mais tarde o corpo dá à costa e ninguém dá pela sua falta.
Os amigos haviam já sofrido o mesmo fim. O velho sozinho e risonho tornara-se o que desejara, um peixe feliz, como nunca fora, num lugar feliz, onde nunca estivera. “O mundo devia ser feliz” murmurou, lá do fundo.
A Catedral não voltou a aparecer durante anos, talvez porque ninguém precisava dela, ou talvez porque ninguém podia abdicar das pessoas que sentem a nossa falta. De qualquer modo, quando a Catedral regressou, foi por tão pouco tempo, que apenas aqueles que se aperceberam da calma e da paz que ressoavam por esses dias repararam nela.
Ana Luísa, 12E
(Enviado por Auxília Ramos)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Um cê a mais

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.
Manuel Halpern, jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias
(Enviado por Auxília Ramos)

sábado, 8 de janeiro de 2011

Receita de Ano Novo



Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade

(Enviado por Hélder Moreira)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011