sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

9ºAno - "Há barcas no cais..."



. Caracterização do Sapateiro

Gil Vicente apresenta nesta cena um sapateiro carregado de formas que simbolizam a sua profissão e a materialização dos seus pecados, neste caso, o roubo “de praça”. Note-se ainda que a palavra “sapateiro” designa, de forma depreciativa, alguém pouco profissional.
Quando apresenta o argumento da aparentemente intensa vida religiosa que levava, o Diabo desmascara-o: “Ouvir missa, então roubar / é caminho per’ aqui”.
Destaque-se igualmente o registo popular utilizado pela personagem, com recurso ao calão.
Quando se dirige à barca do Anjo, mais uma vez, é desvelada a sua verdadeira forma de vida: “Essa barca que (lá) está / leva quem rouba de praça”. É também quando se encontra perante este Arrais, que reconhece o carácter definitivo da sua sentença (“Escrito estás no caderno das ementas infernais”).
Finalmente, o Sapateiro regressa à barca do Arrais infernal, terminando aí o seu percurso cénico, e apresentando-se conformado e resignado com o seu eterno e infernal destino (Vamos, venha a prancha logo / e levai-me àquele fogo! / Não nos detenhamos mais!”).

Pedro Cardoso







. Caracterização do Parvo


Joane, o Parvo, tem uma função cómica ocasionada pelos disparates que profere (cómico de linguagem: “Mija n’agulha, mija n’agulha; “caga no sapato, filho da grande aleivosa!”). Este junta-se às personagens sobrenaturais para criticar os que pretendem embarcar, ou seja, assume uma posição de comentador implacável.
Ao contrário das personagens anteriores, dirige-se de forma mais cuidada ao Anjo, solicitando que o embarque: “Querês-me passar além?”. O tolo é a primeira personagem a conseguir entrar nesta barca, graças à sua inocência e ingenuidade (“Tu passarás, se quiseres;/ porque em todos os teus fazeres / per malícia não erraste;/ Tua simpreza t’abaste / pera gozar dos prazeres”. No entanto, Joane não entrará de imediato, terá de aguardar no cais (metáfora do limbo, da entrada adiada, do purgatório). Pela lógica da doutrina cristã, a inocência, a pobreza de espírito e a pouca importância social salvaram o Parvo: “Bem aventurados os pobres de espírito, pois deles é o reino dos céus”.

Margarida Rodrigues


. Caracterização do Onzeneiro

A personagem da segunda cena é o Onzeneiro. “Parente” do Diabo, o agiota revela uma grande proximidade com o Arrais Infernal (“Oh! que gentil recear, / e que cousas pêra mi!”), sendo até acusado de ter sido auxiliado pelo Demo durante a sua vida pecaminosa (“Essa barca que lá está / vai pera quem te enganou” e “Irás servir Satanás / porque sempre te ajudou”).
O usurário, que revela um espírito avarento e ambicioso, nunca, durante toda a cena, deixa de pensar nas moedas de que se teve de separar e no tempo / dinheiro que estava a perder (“Mais quisera eu lá tardar…”; “Solamente pera o barqueiro / nom me leixaram nem tanto…” e “Lá me fica de roldão / minha fazenda e alhea”).
A personagem, não conformada com o seu destino eterno no Inferno, decide tentar entrar na Barca da Glória. Mas, tal como na cena anterior, o Anjo responde com altivez e desprezo (“Pois cant’eu mui fora estou / de te levar para lá. / Essa barca que lá está / vai pêra quem te enganou” e “Porque esse bolsão / tomará todo o navio”). Durante a cena, apercebemo-nos da sua ascendência social, já que acaba por recorrer à linguagem popular e ao calão (“Aqueloutro marinheiro, / porque me vê vir sem nada, / dá-me tanta borregada / como o arrais lá do Barreiro”), acusando o enviado de Deus de corrupção e subvertendo a essência do próprio Anjo, símbolo e alegoria do Bem.
Tal como o Fidalgo, também o Onzeneiro sofre uma evolução psicológica, uma vez que no início de cena não tem consciência de que vai entrar na Barca do Inferno ( “Não hei eu i d’embarcar” e “Pêra o Paraíso vou”), mas, ao longo do texto, vai-se conformando e acaba por se resignar, entrando, por fim, na Barca Infernal (“Todavia”). Na altura de embarcar, nota-se uma grande tristeza e, até, algum arrependimento por parte do avarento (“Ó triste, quem me cegou?”).
O agiota traz como elemento cénico o Bolsão, objecto que transporta dinheiro, de que não consegue separar-se.


Rita Calisto

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008