quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Onde vais, Valter Hugo Mãe?







Reinterpretar os clássicos

1.




Porto, 20 de janeiro de 1806


Não sei ao certo por que razão lhe escrevo esta carta, se já não está comigo. Cinco meses e dezasseis dias passaram e o sentimento que me invadiu o coração no momento em que o Senhor Simão me leu naquela carta que tinha partido demora-se no meu peito… ainda mais porque o tiraram de mim e eu estava longe! O Senhor Simão parece cada vez mais desolado. As notícias da menina Teresa são escassas, e já nem o brilho da abóbada que o alumia, nem o luar que ele respira, lhe alimentam a ânsia de chegar ao dia em que poderá sair daquele cárcere e a voltar a senti-los além daquelas grades. Costumava ir todas as noites procurar as suas estrelas no céu, com o pensamento em Teresa, que, segundo o que me contara, mantinha o apaixonado ritual. Mas não é cumprida a promessa há já três luas. E eu, que guardo em mim todo o amor que não posso viver com aquele que me chama “irmã”, não sei mais o que fazer para o esperançar… Ah, meu pai, se estivesse aqui como me poderia ajudar! … Só quero o bem daquele que amo. E se de tal feito só a bela fidalga é capaz, então eu rezo para que os dois amantes trespassem todos os embargos e consigam, finalmente, proteger-se um ao outro. Mas nem as minhas preces à Virgem Santíssima parecem ser ouvidas… No entanto, de algo tenho a certeza, meu pai: meu coração assim o diz. Este amor a que assisto é incurável. Simão e Teresa, ainda que as suas famílias não o consintam, amam-se incondicionalmente. Eternamente. E seja qual for o fado desta paixão, no fim terei a certeza que Simão amou, se perdeu e morreu amando. E que este é um verdadeiro amor de perdição. Ainda a refletir a fim de conseguir animar o Senhor Simão, suscitou-me, na manhã de domingo, quando atravessava o largo diante de cadeia da Relação aqui da cidade, a lembrança da menina Rita Castelo Branco, predileta irmã do Senhor Simão. Pobre rapariga! Deve estar tão receosa pelo mano, sem receber qualquer boa-nova… Lembrei-me de a convidar a visitar o parente, ainda que profanando a religiosa vontade de seu pai, o mestre Domingos Botelho. Mas como é situação demasiado arrojada, hesitei em comunicar-lhe a fantasia. Ainda assim, tal pensamento não terá sido em vão, pelo que me ocuparei a partir de agora de meditar sobre a ideia que, se bem sucedida, alegrará, com certeza, o Senhor Simão. Está já a aproximar-se o soar do sino. Está já a aproximar-se o momento de voltar para perto do homem que por amores morrerei. Faz-me falta, meu pai. Sem si, tenho apenas um fim: acompanhar Simão até ao seu último suspiro. Embora o que mais me apoquenta seja a incerteza dos rumos até ao desfecho deste romance. Ainda assim, acredito que o pai tenha ido ao encontro da Virgem Santíssima e que esteja a seu lado a olhar por mim e pelos dois apaixonados.
Com saudade. Sempre sua,

Mariana.
Daniela Santos, 11º C
.

2




Cara Clarissa,
Espero que tudo esteja bem em Londres, que a tua vida seja a projeção dos planos que sempre tiveste para o futuro. Um destino bem delineado, com todas as linhas traçadas e todos pormenores meticulosamente pensados e repensados. Espero que a tua filha esteja com saúde e que continue a ser a pequena menina ajuizada que fora em criança. Mas não espero uma coisa: não espero que o teu casamento seja maravilhoso, não espero que sejas feliz presa a um homem que nem sequer amas. Não espero que esse senhor que dizes ser delicado e atencioso para contigo seja aquilo que aspiraste ter na vida. E digo-te mais: em muitos momentos, senti inveja desse homem que se deita contigo e contigo acorda todos os dias. Sei que ao leres isto não ficarás incrédula. Sei que não irás ficar surpreendida e, obviamente, nunca irias demonstrar tal sentimento. Afinal, as tuas ações respondem apenas a um guião, não sofrem de irreverência. Nunca tiveste um imprevisto, pois não? Não. Tenho a certeza de que nunca irias permitir tal evento. E, diz-me a verdade, amas realmente alguém? É que eu já amei tantas mulheres na minha vida. Sinto que o meu coração já viajou por muitos lugares. E, mesmo assim, nunca te esqueci. Em dia algum apaguei o teu sorriso da memória, um sorriso camuflado pela frieza que te acompanha. Em dia algum deixou de ecoar a tua voz na minha cabeça. Em dia algum se evadiu a tua esbelta imagem dos meus arquivos mentais. E sabes o que é mais curioso? É que a razão por que nunca te esqueci é porque nunca encontrei outra alma feminina que me atraísse pelo seu irreverente desprendimento ao mundo e àqueles que a rodeiam. Escrevo-te isto para te dizer que vou casar. Agora, sim, pressinto que ficaste perturbada com esta revelação. Encontrei uma mulher que nada tem a ver contigo, é doce como todas as manhãs de primavera, de uma beleza extraordinariamente comum, e é com ela que pretendo viver até ao resto dos meus dias. Preciso de paz e serenidade, aquilo que nunca me poderias ter dado. E, a partir de agora, nunca poderás. Não acho que isso te entristeça, acredito que nada disto te deixará perturbada. O que sinto é a tua revolta interior, por te saberes trocada por uma mulher que em tudo se inferioriza á tua altivez, por saberes que não a amo como te amo a ti, e mesmo assim já não és mais a minha escolha. Querida Clarissa, já nos conhecemos há tantos anos, e nunca te disse que a tua postura arrogante perante as situações e as pessoas que te acompanham só resultaram em algo de que irás aperceber no fim da tua vida. Irás morrer sozinha e abandonada, irás tornar-te escrava da tua insolência. Peço-te, sinceramente, que sejas feliz e que faças o mesmo pelos outros. E gostava de ter percebido mais cedo que, mesmo que me tivesses dado uma oportunidade para estar a teu lado, nunca te teria feito feliz. Nunca ninguém fez, nunca ninguém o fará.

Até sempre,Peter Walsh
Diana Falcão, 11ºD
...


3.





Sampetersburgo, 25 de março

Querido diário,
Sabes como são aqueles momentos de indecisão entre saltar o abismo ou manter os pés em terra firme? Aquele sentimento de angústia a dominar o teu ser? Pois, eu hoje sinto-me assim… Penso que as pessoas só dão valor a algo quando o perdem. E o mesmo se aplica a mim! Nunca imaginei que um nariz fosse um elemento tão fulcral na minha vida. Agora que me separei dele, já compreendo a sua relevância. Sim, de facto, hoje o meu dia foi diferente. Acordei cedo, uma vez que os pássaros já entoavam as suas melodias matinais e, lentamente, pois não queria abandonar o conforto da cama, levantei-me para mais um dia neste mundo gélido. Porém, quando me encontrei à frente do espelho, petrifiquei. Por uns momentos, esfregava os olhos, e voltava a paralisar. Faltava alguma peça naquele “puzzle” de beleza humana…. O nariz! Aquele importante pormenor desaparecera ou desertara por algum motivo desconhecido… No entanto, a minha vida teve de continuar, com ou sem face completa. Mas como sair à rua sem que ninguém repare? Como falar com alguém sem que se indague sobre o que se sucedeu? Perante tantos dilemas e sem respostas que os solucionassem, decidi manter a rotina e avançar rumo ao desconhecido. Saí à rua, e a brisa atacou aquele incógnito espaço da minha cara. Aconcheguei-me no cachecol e continuei o meu caminho, passo a passo. Entrei numa pastelaria e pedi algo para me aquecer. O cachecol formou uma barreira entre mim e o café e, por isso, tive de o retirar. Não, não podia permitir que alguém me visse naquele estado. Paguei o café que não bebi e abandonei o estabelecimento. Refugiei-me em casa, com receio de que alguém me visse naquela abominável figura. Mantive-me encarcerado todo o dia, espreitando o mundo pela pequena janela do meu quarto. É impressionante como algo supérfluo, que por vezes tomamos por certo, nos prende a uma realidade na qual não queremos vaguear. Deixamos de ser independentes para vivenciar cada momento das nossas vidas com normalidade. Ficar sem nariz tirou-me a minha independência. E eu julgava-me dono do meu nariz!
Kavaliov

Fábia Alves, 11ºC
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4.

Crítica Literária

Uma Abelha na Chuva




Carlos Oliveira publicou esse livro, Uma Abelha na Chuva, no ano de 1953. O enredo baseia-se na relação estéril de um casal: D.Maria os Prazeres de Alva Sancho Silvestre e Álvaro Rodrigues Silvestre. A ação desenrola-se na aldeia de Montouro, durante um outono chuvoso, e é no decorrer da mesma que o leitor se apercebe de que Carlos Oliveira lança fortes críticas às injustiças existentes na sociedade e nas relações humanas do Portugal do século XX. É de notar a originalidade no começo deste romance: Álvaro Silvestre dirige-se à “Comarca” (jornal local) para implorar a publicação da sua confissão sobre todos os delitos que tinha cometido. Porém, essa confissão acaba por não ser publicada graças à entrada de D. Maria dos Prazeres. Durante o resto da narrativa, todas as personagens que entram em cena neste romance acabam, basicamente, por sentenciar os acontecimentos do dia a dia. D. Maria dos Prazeres, esposa de Álvaro Rodrigues Silvestre, foi, sem dúvida, a personagem que mais me marcou. Amargurada e descontente com o rumo que a sua vida tomou, vive constantemente infeliz e desejando outra vida para si. Nota-se, desde logo, que não nutre qualquer tipo de amor pelo seu marido e está, desde sempre, no casamento por obrigação. Sendo filha de fidalgos arruinados, a sua única alternativa era casar com um homem de uma família abastada. E assim foi. Para além disso, com o passar dos anos, um dos seus maiores desejos não se concretizou. D. Maria dos Prazeres nunca teve o seu tão desejado filho, aumentando, assim, o seu sentimento de fúria para com Álvaro. Durante a narrativa, são claros os seus sonhos com outros homens que cobiçava, no entanto, isto acontecia pelo simples facto de se demonstrar uma figura carente. Contudo, embora D.Maria dos Prazeres pense o contrário, Álvaro gostava realmente dela, algo que se vai revelar no final do livro. Na minha opinião, neste livro, as personagens desenvolvem uma espécie de metamorfose, pois as características que as definem no início do livro diferem das do fim. É, de facto, uma obra escrita com uma grande subtileza por parte de Carlos Oliveira. Será que toda a gente é quem parece? Para descobrir até à última linha…
Maria Inês Castro, 11º C




5. (Clicar na imagem, para ver o vídeo)




segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Natal no mundo

O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade

O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande

O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções

O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
José Tolentino Mendonça

sábado, 17 de dezembro de 2011

Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe regressou ao Colégio Luso-Francês. O filho de mil homens e Quatro Tesouros são as suas mais recentes obras e marcam a maiusculização do seu nome, bem como a confirmação do talento com proporções de tsunami... Eis as impressões de uma inesquecível sessão intimista e comovente:













A sua imagem não era exatamente a que desenhava na minha mente, embora soubesse que a sua hilariante descrição se intitulava "gordo e careca". Ora, fiquei a descobrir que ele é bem mais que isso. Na minha cabeça, ele era um "cromo", era aquele que não entrava em lado nenhum sem o seu bloco e caneta, mas desde logo ele demonstrou que a minha conclusão era precipitada. Sabiamente, encontrou uma forma subtil de embelezar a sua aparência, sendo um "cromo" disfarçado, cuja máscara é o telemóvel, afirmando "namorar" numa eterna mensagem de interminável amor. Enfim, um homem "muito apaixonado".




Fosse quem fosse, não era quem eu pensava que ele fosse, era antes alguém que, procurando um fundo de "coragem" no seu auditório (ao qual insistia em que colocasse questões), o conquistou e cativou, motivando, pelo menos a mim, pessoalmente, não só à leitura dos seus livros, mas também ao desenvolvimento da escrita (nem que fosse, em último caso, por meio de aparelhos eletrónicos).
Ouvir as palavras de Valter Hugo Mãe foi uma enorme oportunidade, na medida em que conheci uma nova realidade e me motivou para, mais uma vez, "encher os meus bolsos de textos" e papéis espalhados por todo o lado, com ideias que simplesmente me vieram à cabeça.
Sara Martins, 11E





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José Saramago, por ocasião da entrega a Valter Hugo Mãe do prémio que ostenta o seu nome, apodou o remorso de baltazar separião de “verdadeiro tsunami literário”. A propósito destas palavras, disse o galardoado, numa entrevista recente: “como se eu, gordinho e careca, sozinho, nas Caxinas, pudesse ter inventado outra vez uma forma de falar português.”




Apesar da contrafactualidade conferida pelo conjuntivo, a verdade é que leitura do autor arrasta realmente consigo a necessidade de aprender a falar de outra maneira. Aliás, se pensarmos bem, qualquer metáfora que associasse a escrita de Valter Hugo Mãe a um fenómeno atmosférico se mostraria apta para a descrever. Um furacão, uma erupção, um sismo… Não são estes, afinal, apenas símbolos extraídos do mundo natural que visam colmatar as insuficiências concetuais para descrever o cavalgar de uma escrita que produz efeitos devastadores sobre qualquer solidez que a linguagem humana possa, aparentemente, oferecer? Dir-se-á que ensinar o leitor a pronunciar as sílabas de uma língua nova é apanágio de toda a boa escrita. E no entanto, em Valter Hugo Mãe, a procura pelo novo parece ser algo essencial – adjacente a uma modificação profunda do discurso da língua-mãe –, como um instinto genuíno que o guia na destruição e reconversão das formas, o que, aliás, se insinua desde os primeiros textos. O uso das minúsculas, o alinhamento tão estranho dos poemas à esquerda e à direita da página, o vocabulário radicalmente oscilante entre o erudito e o rasteiro não seriam já modos de perguntar à língua portuguesa o que, através dela, podemos dizer de novo?





Foi dando resposta a todas estas questões que Valter Hugo Mãe, de um modo tão próximo e tão informal, falou ao pequeno grupo que com ele se encontrou no auditório do colégio, na tarde do dia 7 de dezembro. Tendo como ponto de partida a poesia “desalinhada” na página, Valter, pela mão dos iniciados na sua escrita literária, recordou a sua estada em Paraty, no FLIP, falou do seu recente projeto de ajuda solidária ao serviço de Pediatria do HSJ, no Porto – Os quatro tesouros – peregrinou pelos seus romances e, sobretudo, fascinou e comoveu com uma irreverência que se estende à sua criação como artista plástico. Utilizando uma outra linguagem, as capas dos seus romances são jogos de uma criatividade concetual que podem passar despercebidas ao incauto leitor. Mas quem lê Valter Hugo Mãe não se pode descuidar e tem que estar atento a tudo – às palavras, às formas, ao jogo que os títulos dos seus romances se atrevem a (re)inventar - o remorso de mil homens, o filho de baltasar sarapião, a máquina dos trabalhadores, o apocalipse do nosso reino, a máquina de fazer mil homens…
Auxília Ramos e Hélder Moreira

sábado, 10 de dezembro de 2011

Texto descritivo - 8ºano




Seguem-se descrições em prosa dos alunos do 8ºano. O objeto de descrição é o sorriso de um colega.


Sobre a imensidão das trevas brota o fogo ardente do teu sorriso, e, na perplexidade de um momento, encontro a sua essência. O teu sorriso baila como uma pomba branca que quebra, com um leve esvoaçar de asa, o silêncio.
Sinto o devaneio das cores e luzes cintilantes, confundido na minha cabeça, e quando volto a mim encontro apenas uma simples mas complexa razão: o teu sorriso. Esse sorriso que desperta no meu olhar a vontade incontrolável de te ver; esse sorriso que não depende do tempo ou do espaço, mas de um instante que floresce dentro do teu ser.
E assim, digo, é na fragilidade do meu sentimento triste e esquecido que tu sorris.
Ana Filipa Braga


Vejo no teu sorriso o fresco sopro das manhãs. Quando sorris, iluminas as trevas de uma vida sem sentido. O teu sorriso é uma leve luz que envolve e me eleva à pureza de praias desertas. Ele é como uma onda que sussurra doces melodias, que me embalam sob a fria e rude noite. Sinto no teu sorriso uma carícia de mãe, que me consola debaixo da tempestade. No teu sorriso, nascem brancas margaridas, campos verdes e céu azul; é como um rio de Sol que corre dentro de mim. O teu sorriso amanhece sobre as trevas de um mundo confuso.
Sara Cunha


Sobre esta página em branco, tento descrever o teu sorriso. Um sorriso que desaparece no nevoeiro e que leva consigo a luz do amanhecer. Vejo e não vejo o teu sorriso translúcido que se resguarda no âmago do meu pensamento. Por vezes, viso uma luz por entre esta confusão e escuridão. Porém, por mais que tente pensar o teu estonteante sorriso, não consigo, pois outra imagem me ocupa a mente – uma outra chama, cada vez mais intensa. E agora que penso, afinal aquela luz com que pensava não era tua, mas de outro ser há muito esperado…
Gonçalo Maria


Refugio-me na minha essência a pensar no teu sorriso que brota da mais inocente pétala que esvoaça pelos ares e poisa no meu coração. A sua simplicidade faz-me voar até horizontes proibidos, e eu tropeço no sentimento perdido que desponta no teu rosto. O teu sorriso eleva-me à incomensurabilidade de um leve halo místico de pura e plena Natureza que soergue no meu corpo e trespassa o meu âmago. É como uma rosa que floresce entre a imensidão das trevas e cintila, comprometendo o meu olhar a todo o teu ser, porém totalmente entregue, fitando o fogo invisível que deixa transparecer o teu Sorriso.
Ricardo Seca


(Textos enviados por Hélder Moreira)

Ler - dezembro



domingo, 4 de dezembro de 2011

Livro do mês - dezembro


A análise da poesia de José Rui Teixeira apresenta-nos com clareza a consciência que se vem agudizando, sobretudo, nas antologias do final do século passado (década de 90) e nos primeiros anos do século XXI (nomeadamente, sob a organização de Jorge Reis-Sá, Ricardo Nunes e Manuel de Freitas), de que a Pós-modernidade se caracteriza por uma menor capacidade de inovação e de ruptura e uma certa tendência para a recuperação e regresso a programas estéticos do romantismo e simbolismo. A dita «poesia nova» ou «novíssima» (para enfatizar que a sua criação é de agora mesmo) só o é, em termos periodológicos e cronológicos, e não enquanto categoria epistemológica. Só pode ser encarada como novidade, no sentido em que toda a palavra poética é uma palavra nova e inaugural, conduzindo alquimicamente à verdade e ao Absoluto.
Sem que haja propriamente a noção de «geração literária»
, a poesia contemporânea pauta-se pela diversidade de discursos, pela segmentação e heterogeneidade, separando-se, por isso, do Modernismo e das Vanguardas, revelando uma postura mais nihilista e pessimista face à cultura e ao tempo. Esta espécie de alienação alimentada por um «pensamento frágil» (Lyotard e Vattimo) e a pluralidade são precisamente argumentos da Pós-modernidade.
Por outro lado, desenha um movimento de ênstase e de ênfase no sentido (Mircea Eliade), de mergulho na interioridade e de revalorização da experiência. Ressurge, novamente, a instância enunciadora e a subjetividade que lhe é inerente. Desta forma, a linguagem passa a interpretar a própria experiência, o próprio corpo, a própria interioridade, e acentua-se a tensão emocional do poema. Talvez por isso se possa afirmar estarmos perante uma poesia figurativa ou da experiência, pelo regresso anunciado ao lirismo figurativo, mais próximo da pintura.


Em José Rui Teixeira, este itinerário do silêncio e da solidão faz-se através do tema da morte. Partindo do pressuposto de que a morte revela a verdadeira condição humana, o poeta consagrará a sua escrita como estética do medo e metáfora dessa mesma morte. Algumas aporias foram levantadas: como representar a morte na obra de arte, se esta não foi diretamente vivenciada? Qual a relação entre a mulher, símbolo de fertilidade, e a morte? Ora, a escrita representa para o poeta a oportunidade de mortificação e de experiência de morte; além disso, a perda da figura materna permite-lhe, pela memória, recuperar e duplicar a dor sentida pela ausência e pelo vazio. Deste modo, é pela morte que o sujeito poético acede à reflexão metafísica e existencial, tomando o seu mundo interior como referência. A abertura fenomenológica só se consubstancia através da errância e do vazio. Uma outra leitura possibilita resolver a segunda aporia: a morte simboliza o profundo desejo de reintegração no ventre materno, a angústia da castração e a tensão libidinal acumulada.



Este último aspecto remete-nos para o papel da mulher nesta obra. Verificamos que há uma íntima relação entre mulher e morte. Mais uma vez, estamos no campo do dilema: como explicar que mulher e morte coincidam semanticamente? Assistimos a uma forte tensão entre a figura da mãe e a da mulher violentamente erotizada, entre a mulher que gera e alimenta e a mulher amante. Quer num caso, quer noutro, temos, mais uma vez, a relação com a morte. A suposta fertilidade de semas como “ventre”, “útero” e “sangue” remete, nesta poesia, para a ideia de vazio e de morte; na verdade, o homem só vive plenamente quando está dentro do útero e, portanto, o útero e o ventre contemplados de fora são símbolos do nada e da aniquilação. O mesmo acontece com as referências explícitas à sexualidade: o homem é expulso do corpo da mulher, com o mesmo ímpeto com que esta dá à luz e expele a criança. Fora da mulher, inicia-se a morte, há só morte.




Outro dos traços da sua obra é a sistemática citação da narrativa bíblica e a contribuição para uma "mitologia do sagrado", como apontou Fernando Guimarães. Em articulação com os evangelhos, o poeta procede a uma profunda reflexão escatológica, elegendo a sua poesia como “lugar de um conjunto de intuições teológicas”. Numa declarada atitude pós-moderna, José Rui Teixeira aproxima a religião da cultura. Através do mito, a realidade revela a sua essência (ontofania e epifania) e o sagrado torna-se a própria realidade. Enquanto religação, a religião surge aqui como símbolo de envolvimento do poeta com o sagrado e com o absoluto (teofania) e a mitificação como forma de conhecimento.
Paradoxalmente, encontramos poemas seus que soam como autênticos salmos e litanias e, simultaneamente, outros, que, numa operação de desconvencionalização dos símbolos bíblicos, se instituem como imagens-choque e autêntica subversão e dessacralização dos evangelhos. O sagrado é, assim, vislumbrado à luz do humano, do profano, não deixando, por isso, de ser menos sagrado; bem pelo contrário, encontrado o rosto humano (e feminino) de Deus, o poeta refaz a leitura bíblica através da recomposição mitológica, em que a sexualidade e o erotismo ( e a partir daí o resgate da mulher) são caminho de sacralidade. É todo um programa inaugural que abandona a visão do homem à semelhança de Deus e, num percurso inverso, passa a medir Deus (deus) à semelhança do homem.




Também em relação à linguagem e estilo se aplica aquilo que se concluiu sobre a tendência pós-moderna desta poesia, ao retomar e dar continuidade aos programas estéticos do romantismo e do simbolismo. De facto, verifica-se um tom melancólico e nostálgico, próprio da sensibilidade neo-romântica e uma certa predileção pela morte enquanto tema e semantema.
O vocabulário inusitado contribui para uma inegável e original renovação lexical, alterando a dicção poética tradicional. As imagens perturbadoras, e em certo sentido surreais, povoam um discurso extremamente pictórico e sugestivo que é produzido por múltiplas vozes (polifonia aliás enfatizada pelo recurso ao discurso direto e à inclusão objetiva de um interlocutor omnipresente). Destacamos, ainda, a expressividade das metáforas e dos símiles que perpetuam a rede temática (da morte).
A sintaxe concisa obedece à estrutura tradicional e apenas a pontuação parece perpassar a transgressão, ao esquecer intencional e sugestivamente o ponto de exclamação e de interrogação, deixando ao leitor um papel ativo na vivência emocional da entoação poética.
Finalmente, encerramos com as palavras de Miriam Reyes, ao posfaciar a edição de Assim na Terra , que parecem alcançar o enigma insondável desta poesia que “abre os olhos na escuridão”:

“Porque lo que escribimos es luz refractada. Es cierto, no puedo explicaros lo que he visto, también para leer hay que hundir la cabeza y abrir los ojos en la oscuridad”.




domingo, 27 de novembro de 2011

Ainda a feira do livro



Uma viagem pela irreverência de “Ilha Teresa”

Richard Zimler regressou ao CLF, na passada quinta-feira. Acabado de chegar da Polónia, para onde viajara numa peregrinação editorial, com um notório cansaço, mas com o mesmo entusiasmo de quem vibra com leitores mais jovens, o escritor partilhou com todos os presentes a profunda emoção que sentiu ao visitar, pela primeira vez, a cidade natal dos seus avós, ao entrar na casa que lhes pertencera e que resistira à destruição do exército nazi, ao percorrer as mesmas ruas onde o seu avô correra e brincara… Uma indizível comoção contagiou o silêncio do auditório.


Interpelado pelos alunos sobre o seu mais recente romance “Ilha Teresa”, Richard Zimler falou sobre Teresa e Angel, os dois adolescentes que, desenraizados do seu país de origem, reagiram, cada um à sua maneira, a uma nova vida na “big Apple”.


Confessando uma inegável simpatia por Teresa, o romancista deixou-se contagiar por essa cumplicidade, colando-se perfeitamente à pele da protagonista. Interrogado sobre a eventual dificuldade na passagem de um percurso de raízes históricas, como acontece em “Os anagramas de Varsóvia”, para o percurso próprio de uma adolescente irreverente, sarcástica e intolerante, Richard Zimler simplesmente referiu que esse processo esteve, à partida, facilitado pela sua igual condição de “emigrante” – “a vida de Teresa é a minha vida ao contrário”.


Para quem ainda não lera “Ilha Teresa”, a célebre canção dos Beatles “Strawberry fields” que encerrou a conversa com o romancista pareceu ter criado um entusiasmo contagiante nos alunos de 10º ano. Ficam algumas imagens como testemunho desse encontro.







Auxília Ramos



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(…) Tenho de te confessar que não conhecia o Pedro Sinde – e eu até tenho revolvido bastante a bibliografia pessoana. Fiquei muito interessado pela maneira como ele lê Pessoa (pelo que percebi, e eu não assisti a tudo, numa perspetiva filosófica, de cariz humanista). Fico com a impressão de que a abordagem contida no programa, excessivamente ligada aos estudos do Jacinto Prado Coelho e, por vezes, à perspetiva biografista do João Gaspar Simões, pode dar aos alunos uma visão redutora das dimensões do universo pessoano. Achei muito positivo que eles tivessem contactado com uma perspetiva diferente e, sobretudo, pessoal. É importante que os alunos percebam que Pessoa é inesgotável ou até ilegível, precisamente porque se plasmou, em escrita, na multidimensionalidade de leituras que tudo o que nos rodeia (e todos os que nos rodeiam) permite; que o texto-Pessoa mima a própria condição errática da leitura/ interpretação da realidade. A meu ver, a sua obra começa onde todas as grandes obras começam: na perceção de que tudo é efémero e na constatação da morte. O que ele introduz é uma visão formal (esteticamente fundada a partir de uma teorização da linguagem) do problema (e daí as acusações, por parte de Pascoaes, de excessiva racionalidade). Para os alunos, o importante é perceber que Pessoa inventa um jogo que a linguagem permite (que está inscrito nela) e que esse jogo reproduz a subjetividade na nossa perceção das coisas, das formas, dos outros. Por isso, o Pedro Sinde tem toda a razão quando fala da necessidade de abraçar hermeneuticamente o diálogo entre os heterónimos e quando reforça a ideia de que Fernando Pessoa ortónimo é, ele próprio, um heterónimo. (…)

Hélder Moreira

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Crónica | 10ºAno

Publicamos uma seleção de textos produzidos pelos alunos de 10º ano, na sequência da leitura da crónica de José Eduardo Agualusa "Quero nascer mais vezes" e cujo início é "Ao meu pai roubaram-lhe as mãos." Tendo como mote este início e como desafio de escrita uma imagem do filme do realizador russo Andrei Zvyagintsev (em anexo), os alunos produziram breves crónicas.



1.


Ao meu tio roubaram-lhe o talento. E nada pior poderia ter acontecido a um poeta, como ele. Um poeta necessita de momentos de inspiração, fluidez com a caneta, capacidade de se abstrair do mundo e escrever o que lhe vem da alma. O meu tio, não possuiu nenhuma dessas qualidades.

Sempre disse que era um poeta, desde pequeno, segundo conta a minha mãe. Diz isso com orgulho, convicção e um brilho fascinante nos olhos, “Eu sou um poeta”. Contudo, logo a seguir, o brilho dos seus olhos desaparece e uma nuvem depressiva surge na sua face, à medida que se apercebe que não tem talento. Acorda dessa ilusão e apercebe-se que nunca escreveu boa poesia.

É pena, porque até acho que daria um bom poeta. Fascina-se com os belos poemas, o ritmo dos versos, a eloquência das palavras. Consegue recitar versos de todos os autores que eu conheço. Fala como um poeta, veste-se como um poeta, pensa como um poeta. Parece-se mesmo com um poeta. A única diferença entre ele e um verdadeiro poeta é que não consegue escrever.

Acho que vai dar aulas duas vezes por semana a uma escola qualquer. De resto, passa o seu tempo em casa, a olhar para o teto, à espera que a inspiração divina lhe traga o poema da sua vida. O poema do qual ele está sempre a falar, que lhe dará projeção e prestígio. “Esse poema”, diz ele, “será o meu legado à humanidade, a minha obra prima que me colocará junto dos grandes poetas universais”.

Assim, ele espera, dia após dia, mês após mês, ano após ano, pelo seu m momento de inspiração. Na minha opinião, por muito que goste dele, esse momento nunca chegará.
Duarte Magano


2.



A Natureza roubou-lhe o talento, mas encheu-o cruelmente com o desejo de escrever boa poesia, deixando no seu coração uma tristeza e frustração profunda por não ser capaz.
Ao meu sonho roubaram-lhe o endereço. Sou confrontado inúmeras vezes com o destino já eleito para mim. O objectivo da minha família é constante: tirar um curso, de preferência medicina, advocacia, etc., para ganhar muito dinheiro e “ser alguém na vida”. Os meus sonhos são condenados, as minhas ambições são esquecidas e o que eu quero para o meu futuro é censurado. Não se trata do que eu quero, mas do que querem para mim. Não me é permitido escolher outro rumo para a minha vida. Ouço constantemente: “um dia ainda me vais dar razão”. Será que sim? Só quero ir ao encontro do meu sonho, não quero que tracem o meu destino, quero ser eu a traçá-lo. Não me é permitido desobedecer, apenas cumprir os meus deveres. Só queria por momentos esquecer tudo, olhar em frente e reflectir acerca do que realmente quero para mim, sem ter receio de olhares desiludidos. Quero ser livre. Talvez seja piloto, para voar para fora das rotas que me querem. Estou perdido. Não sei se devo desobedecer àquilo que cuidadosamente foi previsto para mim, sem ter qualquer voto na matéria, ou se deva libertar-me desta rede de pensamentos e mentalidades. Esta opção não só não é tolerada, como também não pode ser colocada. A minha vida é dominada. Resta-me cumprir esta pena, não tenho armas para combater esta guerra.
Hugo Franco, 10A



3. ACIMA DE TUDO VIVER


Ao meu pai roubaram-lhe a vida. Nunca compreendi. Um dia perguntei, mas ele não falou. Hoje já percebo tudo, o olhar triste que tinha, a voz serena que exprimia.

Era eu ainda pequeno quando o meu pai, segundo o que me relatou a minha mãe, teve um acidente. Dizia-me ela: sabes, o teu pai não pode andar, pelo que tens de ajudá-lo! O meu pai ficou paraplégico e nada aconteceu ao outro condutor. Não compreendi na altura por que ele estava triste, mas agora sei. Percebo o que é olhar para o mundo e não o poder viver, ver os outros e não os acompanhar. Percebo por que estava sempre triste e a razão da sua resignação. Não queria lutar. Compreendo tudo o que sentiu. O meu pai morreu há pouco mais de quatro anos, quando, desistindo da vida, decidiu partir. Ousou sobrepor-se ao poder de Deus e pôs termo à vida. Não o fez sem antes me deixar uma carta escrita sobre o sofrimento que tinha, o desgosto que sentia de não ter podido acompanhar-me nas brincadeiras e nos sonhos. Pena tenho eu de não lhe ter dito que o seu coração era maior que o mundo e que por isso superava tudo.

Ele não quis viver e não o condeno. Entendo as suas frustrações, as suas mágoas o seu vazio e a sua falta de esperança, pois, na verdade, a situação que era a dele é agora a minha.
José Diogo Chaves


4. Há dias assim

Ao meu amigo, roubaram-lhe o sonho. Jamais saberei porquê nem como… Planeava viajar por esse mundo fora, sofrer e vencer, conhecer e ser conhecido.

De um dia para o outro, deixou tudo o que estava planeado e, cabisbaixo e melancólico, caminhou até ao mar. Eu estava sempre a seu lado, éramos inseparáveis, amigos para a vida e para a morte. Chegando ao porto dos pescadores, nem sequer abrandou o passo para admirar a azáfama dos que voltavam da faina. Uns levando apenas o suficiente para se sustentarem, outros transportando tudo o que haviam pescado para vender na lota, os pescadores costumavam ser alvo da admiração do meu amigo. Ele ambicionava ser, em parte, como eles, enfrentando os perigos do mar e regressar vitorioso. Um pouco como Ulisses.

Naquele dia, tudo estava cinzento e triste. O meu amigo caminhava, sem parar, sem tirar os olhos da calçada. Chegados à praia, estacou e pôs-se a fitar o mar, contemplando-o em todos os pormenores. A ondulação agitava-se como uma manada de cavalos selvagens, as aves recolhiam a terra, o céu ia escurecendo aos poucos. A tempestade aproximava-se, mas o meu amigo nem estremeceu. As nuvens acumularam-se e foram ficando cada vez mais carregadas. Subitamente, iniciou-se o dilúvio. Eu queria sair dali e ir abrigar-me, mas não abandonei o meu amigo. Parecia que ele queria travar um duelo com a tempestade. A trovoada começou a tocar os seus tambores. O meu amigo continuava ali, imóvel, enfrentando o mar com o olhar.

Após este singular duelo, veio a bonança. O meu amigo vencera. O sol irradiava a terra de novo. O meu amigo, pela primeira vez nesse dia, sorriu. Renascido, voltou para casa, assobiando uma alegre canção capaz de causar inveja à ave mais melodiosa. Há dias assim…
António Pedro, 10A

5.



Ao meu mundo roubaram-lhe a paz. A vivência alegre e livre já vai longe. Agora, ao simples clicar de um comando, a televisão traz-nos notícias tristes. É como o vento ou a frieza da neve que nos invadem e nos mostram o lado insensível da natureza humana.

Outrora não era assim. Possivelmente porque não era tão fácil, não estava tão ao alcance da mão. E era assim que nos ficavam na memória imagens inocentes, ingénuas, cândidas, até.

Mas os tempos mudaram! O ritmo é acelerado, uma corrida infernal em que apenas as catástrofes e a violência se fazem ouvir. É da crise, é do stress... como se todas essas coisas tivessem vida própria para nos atormentar o espírito.

Os tempos já não são de modas!

Andamos ao toque da caixa de televisão que nos traz as notícias. Ao menos, por vezes, há futebol e o Porto ganha. “Venha um copo mais”. O meu amigo do lado esquece tudo, e a tristeza, mesmo que por breves momentos, desaparece. É do tempo!

O tempo tem muitas caras. E valem-nos os intervalos em que chegam notícias boas. E o meu amigo insiste: “ O tempo é como o mar – vem e vai como uma onda”.

Sempre ao alcance de um clique podemos parar, deitar para trás das costas a tristeza e acabar o último copo enquanto o meu colega do lado se entusiasma em mais uma jogada de futebol.

“Vale-nos que o Porto ganha”.

É dos tempos... dos novos tempos!
Gonçalo Magalhães

6.


Ao meu irmão roubaram-lhe a escrita. Rapaz solitário, refugiava-se em si mesmo numa tentativa de escapar à sua vida que, apressada, o arrastava numa rotina frustrante. O meu irmão escrevia. Transcrevia sentimentos, mágoas e angústias, medos e esperanças, alegrias e desilusões, tudo isto num pequeno caderno preto que guardava, por entre aquelas linhas estreitas e direitas, a alma de alguém que, um dia, se havia perdido no seu caminho que fora traçado por outros.
Tinha bastante curiosidade sobre o caderninho e admirava o meu irmão por saber que ali estavam escritas as mais belas palavras. Queria ser como ele. Escrever e ser reconhecido por isso. Fazer algo de que realmente gostava. Ainda me recordo de todas as vezes em que me chamava e, num murmúrio sentido, recitava pequenos excertos do que escrevia. E no fim perguntava-me o que achava. Eu, hipnotizado pela profundidade e encanto das palavras, afirmava que era a melhor coisa do mundo. E ele, afagando-me os cabelos, sorria. Dizia-me que, de alguma forma, era isto que o fazia sentir-se verdadeiramente feliz.
Um dia, a escrita desapareceu. Como, ninguém sabe. Num dia estava lá, repousada, segura. No outro, pura e simplesmente havia sumido. O meu irmão procurou-a, desesperadamente. Uma busca infrutífera, que o fez derramar uma triste e solitária lágrima. Tal como ele.
Ao meu irmão roubaram-lhe a escrita. Mas tiraram-lhe a alma. A simplicidade das palavras, a sua verdade e transparência. Tudo isto havia sumido para sempre. Os raros sorrisos, a ténue alegria quando recebia um elogio, coisas tão pequenas que faziam tanta diferença. E até isso lhe tiraram. Levei-o à praia. E nem uma simples expressão colocou. Continuou ali, fechado no seu mundo, numa tentativa desesperante de se soltar das correntes que o amarravam. E não conseguiu. Portanto ali ficamos, olhando o mar que, suavemente, transmitia a calma e a paz, até ao horizonte, que nos mostrava a linha de pensamento vazia que ocupava o meu irmão.
Ao meu irmão roubaram-lhe a escrita. E a mim, roubaram-me o meu irmão.
Beatriz Valongo


7.A Face oculta do mar



Ao meu pai, roubaram-lhe a vida. Nunca me pôde dizer como. Nem ele, nem os seus quatro amigos que pereceram no mesmo dia, à mesma hora, no mesmo local. Juntos. Disse-me: à noite, vamos ao cinema. E eu esperei, espero e esperarei por essa ida prometida.

Desde então, nunca mais voltei ao cinema. É uma espécie de homenagem aos dias maravilhosos que passei com ele a ver filmes, numa sala exígua para tanta felicidade.

No entanto, não desanimo. Acredito que o poderei reencontrar no fim do meu filme da vida. A tela apaga-se, as portas fecham-se. E eu, lentamente, começarei a subir, até alcançar o meu pai e poder concretizar esse desejo inacabado, promessa não cumprida.

Sei que pouco ou nada sei acerca da morte do meu pai e dos seus fiéis companheiros, pescadores inseparáveis. Na verdade, apenas conheço o local e responsável pela sua morte e o nome do barco em que seguia. Mar e Douro, respectivamente.

Ah, o mar! Capaz de proporcionar tão bons momentos e ao mesmo tempo de desmoronar uma vida, ruir uma família. Ele, naquele dia, mostrou a sua face oculta, bipolaridade desconhecida. Porém, não guardo rancor, mas nunca mais voltarei a nadar nas suas águas, pois embora saiba que foi um acto involuntário, não posso perdoar quem deflagrou esse acontecimento fatídico.

Agora, sempre que olho para o mar, vejo-o de maneira diferente, com desprezo e desilusão, se bem que seja a mesma água salgada e o mesmo cheiro a maresia.

Observo o horizonte durante horas a fio, esperando que algo ou alguém renasça das águas traiçoeiras do mar. Aguardo pela vinda do meu pai, que me dê a mão como costumava fazer, para nos dirigirmos ao cinema prometido.

Talvez ele espere que faça o mesmo: que termine o meu filme da vida e que me dirija ao Céu, já que parece que o caminho inverso é impossível.

Eu espero pela sua vinda, ele espera pela minha ida, mas o que ambos queremos é a oportunidade de nos reencontrarmos,

Talvez um dia mais tarde, quem sabe?
João Silveira, 10A


8.



Ao meu pai roubaram-lhe a alma. Nunca me contaram como aconteceu verdadeiramente. Disseram-me, apenas: um dia o teu pai foi para o mar; havia uma grande tempestade. No entanto, quando regressou a terra firme, era tarde de mais. Penso nisso todos os dias. Penso nisso quando trato do meu irmão e o meu pai lá não está. Também penso nisso quando passo pela lota e o cheiro a peixe me invade o nariz. Também penso nisso quando olho para o mar. Penso nisso todos os dias, a toda a hora.

Quando deambulo pelas ruas da aldeia, procuro o riso, o cheiro, a figura do meu pai. Olho para todos os homens: altos, baixos, gordos, magros, mas nenhum é o meu pai.

O meu pai dava vida à casa. Todos os dias, depois de jantar, ele tocava no seu velho violino para mim e para o meu irmão. Nós deliciávamo-nos a ouvir aquela doce melodia. Outras vezes, limitava-se a cantar ou a contar histórias de quando estivera na Guerra Colonial. Agora, tudo é diferente. Não temos ninguém que nos aconchegue à noite, nem que nos conte belíssimas histórias, pois eu e o meu irmão somos órfãos de mãe e de pai. A minha mãe falecera quando o meu irmão mais novo nascera.

No tempo em que o meu pai ainda não tinha partido, ele costumava levar-me ao cimo do pontão para observamos o mar. Costumava dizer:

- Filha, o mar é muito belo, mas esconde muitos perigos. Nunca tentes inferiorizá-lo.

Hoje penso muito no seu conselho. Se havia alguém que tentava inferiorizar o mar era o meu pai. Todos os dias, independentemente do seu estado, ele nele se aventurava. Fazia-se de corajoso, mas nesta luta de forças, quem saiu vencedor foi o mar.
Ana Lídia Ferreira Neves

Trabalhos enviados por Auxília Ramos

domingo, 6 de novembro de 2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O admirável mundo do livro


Clicar na imagem, para aceder ao vídeo.




O Livro



Após semanas, meses, anos, de intensa dedicação para proporcionar os melhores momentos ao afeiçoado e ambicioso leitor, sempre com um desejo e fome de saber mais, chegou finalmente a nova criação, a nova inovação, … o LIVRO. Das aventuras de suspense às histórias românticas, passando ainda por algumas de crime e ação, esta avançada “tecnologia”oferece de tudo, satisfazendo todos os gostos para quem lê, do mais recente ao mais antigo, do mais fácil ao mais complexo, do mais simples ao mais exigente.

O poder é teu. Sem quaisquer barreiras, o LIVRO proporciona-te o poder de decidires: quem ganha e quem perde, quem é o bom e quem é o vilão, e ainda o perfil de cada uma das personagens. Tu defines o cenário, as personagens e o desenlace, pelo que tens todos os ingredientes para ótimos momentos.

Sem precisar de energia e sem quaisquer complicações técnicas, o LIVRO não está exposto a qualquer tipo de vírus ou qualquer problema de hardware, sendo constituído por materiais duradouros, simples e, para juntar à “mistura”, totalmente recicláveis, não apresentando quaisquer características nocivas para o ambiente.

Tu decides, da forma que te apetecer.

Embarca neste novo movimento e prova o sabor do LIVRO, por ti próprio. Vem conhecer o mundo da imaginação!

Tiago Simões, Tiago Vasconcelos, 10º ano C
(Enviado por Auxília Ramos)

Tratamento técnico da Coleção das Artes Cénicas



Clicar na imagem seguinte, para aceder à página online. Mesmo não indo já a tempo, é interessante ficar a saber o que se tem feito:



Enviado por Auxília Ramos


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Oficina de escrita em Barcelona

1.Exercício de completamento a partir dos versos inicial “Paga-me um café e conto-te/a minha vida” e final “Pago-te um café se me contares / o teu amor” de José Tolentino Mendonça, sendo obrigatório utilizar dois elementos do pátio gótico onde os alunos se encontravam e duas ideias de um poema de José Rui Teixeira.

«Paga-me um café e conto-te
a minha vida.»
lufadas de ar
fugidas contra o granito.
A história do gato
que adormeceu sobre laranjeiras
agitação tremenda
de amar.
«Paga-me um café se me contares
o teu amor.»
Sara Cardoso
...

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2.
Poema realizado em grupo (cinco pessoas) a partir de uma obra de uma das exposições visitadas na Caixa Fórum. O grupo escolheu uma obra de Pierre Huyghe. A “técnica” utilizada para a elaboração do texto foi a discussão de ideias sobre o que a obra representava para cada um, seguida da redação conjunta do poema.

Cordas.

Danças com a ingenuidade
de quem domina o mundo.

Baloiços em flor. Gastas
todos os nós
todos os degraus
Como se as cordas não fossem mais
do que pautas.

Deixa somente a música.
Lembra-te:
as teias são
crianças deitadas no sal.

Prémio Nobel da Literatura 2011




Tomas Tranströmer, poeta sueco,

A notícia completa está no Público.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Ode Marítima" em novo espaço de animação artística




O porto de Leixões exibe uma renovada barreira de contentores animados graficamente pelo designer Francisco Providência. Os antigos contentores, cuja pele enferrujada agredia o ambiente, conferem a Matosinhos e, mais particularmente, a esta zona portuária, um novo rosto, cirurgicamente intervencionado por uma equipa de “artistas”, dos quais se distingue uma ex-aluna do colégio, Marina Soares Francisco.


A “Ode Marítima” do heterónimo pessoano Álvaro de Campos (engenheiro naval) foi motivo de inspiração para o novo visual do porto de Leixões, enquanto espaço de partida e chegada.
Intervenções artísticas desta natureza animam esteticamente as nossas cidades e promovem o enriquecimento cultural dos seus habitantes. É motivo para dizer a arte (também) está no porto de Leixões! Visitem-no!
Auxília Ramos

domingo, 25 de setembro de 2011

Livro do mês - setembro


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Clicar na próxima imagem, para aceder à descrição da obra, feita pelo próprio autor, Valter Hugo Mãe:

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Inédito de Saramago publicado em outubro


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A clarabóia, romance de juventude de José Saramago, chega às livrarias no dia 15 de outubro. Aqui fica, através da FJS, um pequeno excerto com as primeiras linhas:

domingo, 18 de setembro de 2011

António Lobo Antunes no Teatro São Luiz





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"Deste viver aqui neste palco escrito"
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Foram três dias (de 15 a 17 de setembro) de festa literária, com um programa multifacetado e preenchido: o espetáculo de Maria de Medeiros; o filme de Solveig Nordlund; a leitura posta em som por José Neves; o lançamento de Facts and Fictions of António Lobo Antunes, do centro de Cultura e Estudos Portugueses da Universidade de Massachussetts, e uma mesa redonda, moderada por Maria Alzira Seixo e que contou com a participação de João Lobo Antunes e Eduardo Lourenço.

O jardim de inverno do São Luiz, mergulhado na poalha de luz do crepúsculo, encheu-se de mesas atentas e de um silêncio nervoso e suspenso. Num ambiente intimista e informal, que contou com a presença do escritor homenageado, Maria Alzira Seixo conduziu a conversa sobre a obra e os temas antonianos.



Phillip Rothwell referiu-se, na sua intervenção, à importância da memória nas crónicas e nos romances de Lobo Antunes. Segundo este investigador, a imaginação do autor é uma forma de organização da própria memória. De facto, embora parta de um campo referencial autobiográfico, o escritor parece despersonalizar-se e apagar a noção de individualidade da escrita, desconstruindo-se, numa temporalidade íntima que se converte em intemporalidade e desejo de posteridade. Um dos aspetos mais interessantes que o especialista fez notar prende-se com a omnipresença da imagem do relógio, numa intrigante reconfiguração do próprio texto e confirmando a suspeita de que a memória é a principal matéria da narração.


Seguiu-se João Lobo Antunes, irmão do escritor, que se deteve especialmente sobre o caráter autopatográfico do livro Sôbolos rios que vão. É uma narrativa, quase tchekhoviana, da doença que enfrentou em 2009, urdida ao longo de uma diacronia caótica, de coerência tensa, abundante em personagens e em alusões autobiográficas. O herói é o narrador que se refugia nas memórias da infância, nos fragmentos do património familiar. Neles encontra a principal matéria para a rede metafórica sobre a qual se funda a linguagem do romance. João Lobo Antunes, o médico, ressalta o poder de imagens como a do "ouriço", a que o autor recorre para se referir ao "cancro", ou a da "peça teatral" para designar a doença, ou ainda a do "nevoeiro" para a anestesia. Metáforas biológicas inusitadas e inaugurais. Conclui, comparando António, o irmão mais velho, a Ulisses e a D.Quixote, e a doença à viagem. Depois de errar durante muito tempo, Ulisses regressa a Ítaca e a Penélope, encontrando finalmente o porto tranquilo...





Maria Alzira Seixo, por seu turno, centrou-se na exegese literária, desenvolvendo o topos da vacilação/proliferação. De ressonância camiliana, a linguagem antoniana é um terreno fértil em mutação, em hesitação. O discurso abre brechas, a sintaxe afetiva é notória: frases curtas, suspensas, cortadas, apenas completadas nas páginas seguintes; um labirinto que requer a paciência e sageza do leitor. A investigadora e especialista destaca, como obra-prima, Boa tarde às coisas aqui em baixo, a prova de que Lobo Antunes soube ler bem os clássicos e reinterpretá-los, inovando.

Por fim, Eduardo Lourenço, numa intervenção mitogónica e filosófica, apontou As Naus como obra de eleição. Nela diz ter o autor naufragado no luto do império perdido, convertendo essa memória épica em farsa burlesca. Os heróis perdidos são reciclados e o mundo surge sem os fumos da Índia. Já nas suas crónicas, Lobo Antunes, em laivos surrealizantes, constrói imagens como a de uma nuvem com raízes sempre a partir, ou a de um comboio mágico, que refletem um exercício de autocompreensão do seu próprio outro. A infância é o seu paraíso. E, mais uma vez, o papel da memória: o escritor tem o gesto de um deus que se suicidou na sua criação e que, como Deucalião, está em cada fragmento desse caos. O filósofo e ensaísta concluiu descrevendo a escrita de António Lobo Antunes como um "exercício épico da memória numa navegação sem bússola pelo arquipélago da desolação (...), entre o êxtase e o aniquilamento (...), até voltar a um nada de que não nasceu".
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