sábado, 25 de dezembro de 2010

É Natal no mundo...


(João Rodrigues, in www.olhares.com)

Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde de um dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás de um homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza de uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma inocência humana. Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da criança.
Mas o homem caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente. Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança.
Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu.
Como contar o seu gesto?
Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta: A sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem.
A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente -passavam sem o ver.
Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.
Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era impossível continuar parada.
_ Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. Desenrolei para trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita solidão, de abandono e de pergunta.
E do fundo da memória, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfundíveis, apareceram as palavras:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Então compreendi por que é que o homem que eu deixara para trás não era um estranho. A sua imagem era exactamente igual à outra imagem que se formara no meu espírito quando eu li:
- Pai, Pai, por que me abandonaste?
Era aquela a posição da cabeça, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solidão.
Para além da dureza e das traições dos homens, para além da agonia da carne, começa a prova do último suplício: o silêncio de Deus.
E os céus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.
Voltei para trás. Subi contra a corrente o rio da multidão. Temi tê-lo perdido. Havia gente, 'gente, ombros, cabeças, ombros. Mas de repente vi-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a criança e a olhar o céu.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava já a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no chão. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expressão de infinita paciência.
A criança caíra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue.
Então a multidão parou e formou um círculo à volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurram-me para trás. Eu estava do lado de fora do círculo. Tentei atravessá-lo, mas não consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um único corpo fechado. À minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licença, tentei empurrar, mas ninguém me deixou passar. Ouvi lamenta­ções, ordens, apitos. Depois veio uma ambulância. Quando o círculo se abriu, o homem e a criança tinham desapareci­do.
Então a multidão dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.

Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas.

Sophia de Mello Breyner, in ”O Homem”, Contos Exemplares

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Livro do mês - Cabaz de Natal


José e Pilar





No dia 30 de Novembro, às 15h, as turmas do 12º ano foram ao cinema Dolce Vita, onde teve lugar uma sessão que contou com a presença do realizador, com quem os alunos tiveram a possibilidade de dialogar e debater algumas questões. “A Viagem do Elefante”, o livro em que Saramago narra as aventuras e desventuras de um paquiderme, transportado desde a corte de D. João III à do austríaco Arquiduque Maximiliano, é o ponto de partida para “José e Pilar”, o filme documentário de Miguel Gonçalves Mendes, que retrata a relação entre o Nobel José Saramago e Pilar del Río. O filme pareceu-nos, pois, um bom pretexto para os alunos conhecerem um pouco mais sobre o autor do romance “Memorial do Convento” (a estudar em aula), bem como o homem que tem uma visão muito particular sobre o mundo e que dela nos dá conta ao longo da sua produção literária.
Deixamos alguns testemunhos desta experiência didáctica:

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Vejo-te velho, cansado, pregueado por rugas, curvado… vejo-te de óculos, sentado, pasmado, incomodado, observador, observado, com vontade de saber-te “quase homem” Saramago. Ouço o som da tua voz rouca, e o som dos significados que ela transporta. Sinto que o tempo é a montanha que nos espera no topo, e não nos dá o caminho de volta. Sinto que nos deixas apenas uma falta de espaço físico, um lugar chamado anti-lugar, como se a vida (que vida?) coubesse mesmo no pico da montanha da criança.
Penso nisto: e é tudo a vontade de saber-te “quase homem”.
Teresa Stingl, 12A


Talvez tudo o que chegue tarde, não chegue tão tarde como o amor. Mas Saramago soube esperar. Esperou até encontrar Pilar, a protagonista de toda a sua vida. A imagem de Saramago transmitida pela televisão, pelos jornais e revistas, não é de todo aquela que figura no filme “José e Pilar”, realizado por Miguel Gonçalves Mendes.
José Saramago vestiu, na minha opinião, excessivas capas durante o seu “percurso humano”: a de comunista desgraçado, a de aparente recusa da própria nacionalidade ou até a de ateu em quem ninguém acreditava. Sempre foi incompreendido por toda a sociedade portuguesa, chegando a sua obra a ser repudiada por todos aqueles que gostavam de acreditar nos media. No entanto, essa não foi a imagem com que fiquei após o visionamento de “José e Pilar”. Nem eu, nem ninguém. Ninguém pode ser capaz de permanecer indiferente a tamanha história de amor ali retratada. Poderão talvez considerá-la uma exploração das vidas de José e Pilar, mas o que aconteceu durante quatro anos de filmagens, não pode nem deve ser tido como explorado ou manipulado.
Penso também ser imprescindível referir todo o trabalho cénico do filme. Desde a banda sonora, que considero soberba e inesperada, até à forma como as cenas estão montadas ou as pessoas filmadas. “José e Pilar” assume o papel de documentário sobre a vida de duas figuras públicas e da sua história de amor. No entanto, a maneira como todo o filme foi filmado surpreendeu-me imenso. Este “documentário” pode assumir o corpo até de um romance, se assim quisermos rotulá-lo.
Sempre tive a impressão de que Saramago levava uma vida fácil, sem nenhuma dedicação ou interesse. Contudo, a fugacidade com que a viveu é capaz de apavorar. Saramago habitou uma vida absoluta, inundada de compromissos, não só “literários” como também pessoais. Era em Pilar que ele se apoiava, não por conveniência, mas por vontade.
Para concluir, devo dizer que “José e Pilar” foi capaz de me despertar a reflexão em relação à vida e à forma como tratamos as pessoas, quer elas sejam próximas ou não. O Saramago insensível não existia. Quem o substituía era o Saramago apaixonado e devoto.
Luísa Santos, 12ºD
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Fomos ao cinema ver o filme "José e Pilar" e, no fim, tivemos a possibilidade de falar com o realizador Miguel Mendes.
Já tinha curiosidade de ver este filme mas, na minha opinião, o documentário excedeu todas as minhas expectativas. É como ver o outro lado de uma pessoa. O que ouvia sobre Saramago nunca era de forma completa e isenta, ou seja, nunca completamente mal, mas também nunca completamente bem. A minha opinião sobre ele não era nenhuma, pelo facto de, em mim, haver tantas discordâncias que me colocavam por fora do assunto. Este filme/documentário fez-me perceber que há uma pessoa por detrás de um escritor, uma pessoa que tem opiniões como todas as outras e que não tem medo de as admitir. Um homem forte que, com nenhuma ou quase nenhuma formação, ganhou um prémio Nobel. Um homem que ama, ama muito, que de pouco tem medo e, em pouco, existe incerteza na sua vida.
Recomendo o filme, são duas horas que, de novo, na minha opinião, não nos cansam, mas sim nos fazem perceber o que perdemos e ganhamos com este homem.
Rita Reis, 12ºE
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José e Pilar, ainda em exibição num cinema perto de si, chega ao mundo como um relato da vida de José Saramago e Pilar del Rio nos últimos anos do Nobel da Literatura. Filme realizado por Miguel Gonçalves Mendes, foi produzido com gravações do dia-a-dia do casal, enquanto Saramago lidava com a sua vida, a de Pilar, e A viagem do elefante.

O Homem

José de Sousa Saramago surge-nos, nesta longa-metragem, despojado do traje egocêntrico que sempre lhe tentaram vestir, sem presunções ou altivez. Apercebemo-nos que, de facto, a pessoa quase ignóbil e inquestionável criada pela imprensa não passava de uma máscara ignorada por Saramago. Este era, como todos nós, um ser humano, normal, e de uma simplicidade inicialmente estranha. Acima de escritor, José Saramago era um Homem, que apenas se distinguia verdadeiramente pela sua forte personalidade, vincada de fundamentados ideais.
Tal como a viagem do elefante, a vida de José Saramago também teve um fim, e, enquanto este o esperava pacientemente, sem pressas, da mesma forma que Ricardo Reis assinalava o inevitável ponto final, queria sempre viver um pouco mais, fruto de um carpe diem em que diariamente se envolvia. Em José e Pilar damos conta do célere quotidiano do escritor português, que viajava em torno do globo, retirando um pouco de si para dar aos outros, àqueles que nem sequer conhecia, durante um tortuoso processo que viria depois a acamá-lo.

A Mulher
Pilar del Rio é a personificação da letra capitular da palavra Mulher, uma mulher de armas que apenas parecia baixar a guarda a um homem quando este era Saramago, e ninguém mais! Dotada de um forte feminismo, a Presidenta (sem aspas) da Fundação José Saramago, foi verdadeiramente o pilar da vida do português. Na vida do Homem e do escritor a jornalista surge como pedra basilar, funcionando como força motriz para toda aquela correria desenfreada.
Aos olhos do espectador, Pilar comprova a adulteração pública de que sofreu o véu que a cobre; a personalidade forte é comprovada, mas a tirania de que a acusam é blasfémica. Por detrás de um grande homem existe sempre uma grande mulher, e era esse mesmo posto que Pilar del Rio ocupava, entregando a Saramago força para continuar quando parecia que simplesmente não dava mais. No fundo, Saramago parecia viver para Pilar e Pilar vivia para Saramago, numa relação de reciprocidade apoteótica.
O resultado de toda esta produção é bastante bom e cumpre, de forma irrepreensível, ainda que porventura indesejadamente, a função de reestruturar e renovar a imagem que o Mundo possui de José Saramago, uma imagem mais intimista e próxima do real. E, com a visibilidade que a morte do escritor recolheu, tem a possibilidade de fazer espalhar esta nova fé, com muito maior sucesso.
Está (re)descoberto o Homem por detrás da personalidade ideológica e literária.
Francisco Gomes, 12ºD
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“José e Pilar” é o mais recente filme de Miguel Gonçalves, um filme tão realista que toca o maior grau de crueldade e consciência. Um filme, no mínimo, arrepiante. José Saramago chega, assim, às salas de cinema, inteiramente a descoberto.
Miguel Gonçalves apresenta-nos uma obra que se escreveu sozinha, uma obra que, no fundo, não necessitaria de realizador, de luzes ou de câmara. Foi-nos ostentado um herói da escrita, cujos poderes o fizeram refugiar-se num país que não era o dele, numa língua que nunca foi sua. Culpando Pilar, destituímos a culpa de termos repelido um dos maiores escritores portugueses para um pedaço de terra que nunca lhe pertencera. Mas terá sido toda essa culpa atribuída em vão? Atribuída ao acaso? Não era Saramago um herói? Então, qual o porquê deste abandono quase repulsivo? Qual o porquê de não lutar contra um país que se faz de cego? Qual o porquê de não lutar contra um país que não lhe convinha, mas que nunca deixou de ser seu? Terá sido toda essa culpa atribuída em vão? Atribuída ao acaso? A Pilar, que nos foi vangloriada como salvadora de Saramago, e que pareceu esconder uma mulher cujas convicções, por vezes, se tornavam mais altas que o próprio marido. A Pilar, que nos foi vangloriada, começou a transformar-se numa mulher cujo juízos de valor em relação a Portugal quase se liam sem precisarem de ser escritos. Apontando-nos como membros de um governo que não presta, generalizando-nos como superiores em relação a tudo, conseguiu, em parte, justificar toda essa culpa que lhe fora atribuída. Porque, no fundo, o que transpareceu foi que nem Portugal nem Saramago se haviam separado, mas que os interesses políticos de Pilar del Río e de um governo que, realmente não presta, colidiam, tornando a convivência entre os dois impossível.
Miguel Gonçalves introduz-nos, então, a história de amor entre José Saramago e Pilar del Rio. E a disputa da mesma em tentar vingar-se de um país que nunca a acolheu.
Ana Catarina Tonel, 12º E
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Queria fazer um documentário sobre Saramago, talvez porque não acreditava no que diziam sobre ele, e reparou que Saramago era, em parte, Pilar. Assim nasceu este documentário de Miguel Gonçalves Mendes, acompanhando a escrita do livro “A viagem do Elefante”.
Saramago era, sem dúvida, uma figura carismática, polémica, neste país, e ainda o é. Tudo o que eu sempre ouvi sobre ele, e, provavelmente, quase tudo o que foi dito sobre os seus ideais, foram comentários negativos ou insignificantes, coisas que me pareciam realmente exageradas para um homem só. Perguntava-me se era possível existir alguém tão maldoso e fora de senso. Neste filme, Saramago aparece-nos como um homem simples, de ideias firmes, mas nada disparatadas, um homem que via o mundo de um modo diferente, mas não errado. Ao seu lado, é-nos apresentada Pilar del Río, jornalista considerada irreverente e fria, mas que, no fundo, apenas se dedicava a quem amava. A relação entre um e outro baseia-se no respeito e no dedicar das suas vidas mútuo. "A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar", a quem José estava irremediavelmente destinado, com quem se verá noutro sítio. A ideia de alguém estar determinado a outro, não por obrigação, mas por desejo e realização de uma vida feliz, é uma das muitas formas de Saramago demonstrar a paixão inevitável que o fez viver a vida.
É importante referir Portugal, concretamente os portugueses, no meio de tudo isto. Este documentário embaraça qualquer um. De facto, ou o espectador é confrontado com a falta de atenção dada a este escritor, que tanto era cobiçado no resto do mundo, pelo nosso país, ou envergonha-se com a excessiva cretinice dos jornalistas portugueses, não generalizando, com alguns dos jornalistas portugueses.
No fundo, a imagem degradada e incoerente de Saramago é desmanchada, mostrando-nos que, apesar de todas as suas convicções, ali se encontrava apenas um homem, sem sabedorias divinas ou pretensões egocêntricas. Um homem com Pilar, com os livros e consigo próprio. Saramago era…
Ana Luísa de Matos Gomes, 12ºE
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“Eu tenho ideias para romances, ela tem ideias para a vida”
Tenho feito publicidade ao trabalho de Miguel Gonçalves Mendes, com quem tivemos a possibilidade de conversar, após assistirmos a José e Pilar. Confesso que li pouco de Saramago: apenas A Maior Flor do Mundo, quando era mais pequena. Mas também admito que era impossível não conhecer o tão irreverente, caótico, nobel, José Saramago. De Pilar, apenas conhecia o rosto, das imagens que passaram na televisão no dia da morte do marido.
A frase que tenho repetido é curta: afinal havia um ser humano por detrás do escritor. É tão simples quanto isto. Saramago podia ser muito polémico e era-o, mas só por dizer, de forma tão despreocupada, tudo o que pensava. Infelizmente, essa foi a máscara com que viveu, pelo menos no nosso país.
Miguel Mendes mostra-nos um homem diferente, que dedicou a sua vida a “Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”, cujo único medo se lia nas entrelinhas de “Subi ontem à Montanha Blanca. Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: Se caio e aqui me mato acabou-se, não farei mais livro.”
Sara Cardoso, 12º D
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Olho-te o mais fundo retalho de alma. Vejo, como Blimunda, a “vontade” que trazes no mais íntimo do teu ser. Pareces-me caído, cansado. Um homem que suga os dias na ânsia de uma morte que não tarda. E, mesmo assim, moves-te. Aproveitas cada segundo que te é dado. Reencontras a paz que te fortalece nos pensamentos mais distantes. Recolhes cada um deles e uma história começa. Escreves e escreves, regrada mas continuamente. Transpões tudo o que és em simples palavras e uma história prossegue. O fim nada te perturba a mente. Sonhas continuar a tua arte numa qualquer outra vida. E uma história nunca acaba.
Joana Nunes, 12º A
(Enviado por Auxília Ramos)

Ainda a Feira do Livro

















quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Feira do Livro 2010

Do contacto com os textos no rosto dos autores




No âmbito da última edição da Feira do Livro, o nosso Colégio recebeu os escritores Ana Luísa Amaral e Richard Zimler para uma conversa com os alunos do ensino secundário.
O desafio das palavras, a sua presença indefectível na nossa compreensão do mundo, a relação entre a identidade e a escrita, e a infinita presença do poético no quotidiano foram algumas das questões focadas por Ana Luísa Amaral, autora do recente Inversos, publicado pela Dom Quixote, que reúne toda a sua poesia, publicada entre 1990 e 2010. Inicialmente convidada a falar para os alunos do 12ºano, no contexto do estudo da estética modernista, a autora captou, igualmente, a atenção dos alunos de 11ºano, lendo e citando de memória poemas seus e de outros poetas, a fim de ilustrar alguns traços fundamentais da concepção de poético subjacente à sua escrita. Em particular, mostrou-nos que a poesia é um lugar de ilimitadas possibilidades, onde a vida vivida se transforma inevitavelmente numa pessoana vida fingida. Ana Luísa Amaral trouxe-nos, pois, mais do que conceitos – dir-se-ia, nas palavras de um poema seu, o último que leu: «mais que um horário certo/ ou uma cama bem feita» –, a presença sempre afectuosa e intensa das suas palavras, em duas sessões totalmente diferentes e igualmente inesquecíveis.
Embora o tempo tivesse sido escasso, ainda houve lugar para algum diálogo com os alunos, principalmente os de 12ºano, para quem o estudo da poesia pessoana suscitou algumas questões sobre o processo de criação poética e os inerentes e indecifráveis limites da realidade e do fingimento.
Deixamos convosco um poema há algum tempo partilhado pela Ana Luísa, numa outra sessão, num outro tempo, num outro lugar.


Irei agora carregar o tempo
de mil relâmpagos,
tempestades de agosto
e algum rio.
E nele falarei sem
sequer trovas

Habitarei as coisas de tal forma
como a lareira esguia do meu lado,
o tempo carregado de chamas
e de mim

Do tecto desta sala pendem coisas
muito antigas de usar,
mas o que mais me atrai é a chaleira:
tão de ferro e polida,
terá mais de cem anos e uma história
com águas e com tempo,
antes deste seu tecto
– e a solidão

Recorda-me a paixão ainda verde,
as chamas do inferno a consumi-la
sem nunca a destruir.
E uma noite de vento e tempestade,
com que uma vez me assassinei de amor,
e incendiei dezembro

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Richard Zimler, acabado de chegar do Brasil com a edição deste país de Os Anagramas de Varsóvia (Oceanos, 2009), depressa transformou a sessão com os nossos alunos do 10º ano num diálogo vivo e estimulante, que transbordou muito para além das margens, já de si dúcteis, da literatura. Convidado a falar sobre a sua obra, a propósito do estudo do conto do século XX, o autor mostrou que a ficção é um universo aberto ao mundo e de onde nada pode ser excluído. Desta forma, se a conversa se iniciou, de facto, por Os Anagramas de Varsóvia (que alguns alunos mostraram ter já lido) e pelo mais recente Do Conserto do Mundo (obra de criação colectiva, na qual o autor participa, e que reúne contos sobre a miséria a pobreza modernas, no âmbito do Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e Exclusão Social), questões como as diferenças culturais entre Portugal e Estados Unidos, o prazer de viajar e as atrocidades que os seres humanos são capazes de infligir aos seus semelhantes rapidamente se tornaram incontornáveis. A sessão contou com uma participação muito activa dos nossos alunos, dado que uma parte substancial do seu tempo foi ocupada por questões. No final, decorreu a inevitável (mas sempre entusiasmante) sessão de autógrafos!

Do contacto com os textos no rosto dos autores: duas experiências estimulantes e inesquecíveis – para os alunos, para os autores e para quem mais pôde assistir!

Auxília Ramos e Hélder Moreira

domingo, 5 de dezembro de 2010

Livro do mês - Dezembro - Gonçalo M. Tavares

Mês dedicado a Gonçalo M. Tavares, vencedor do Prix du Meilleur Livre Étranger 2010 (França) com "Aprender a Rezar na Era da Técnica".
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Destaco, sobretudo, a sua última obra, Uma Viagem à Índia, e deixo as palavras do escritor, em entrevista ao Público:

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Esta epopeia do séc. XXI, “Uma Viagem à Índia”, conta as aventuras, mais mentais mas também físicas, de uma personagem, Bloom, que sai de Lisboa em fuga em 2003.
É como se, passo a passo, Bloom seguisse o percurso de "Os Lusíadas", mas acompanha-o como se partisse de um mapa de um outro mundo. Os acontecimentos são passados em 2003, com uma personagem de ficção que parece ela mesma saber que é personagem de ficção. Na viagem de Bloom todos os acontecimentos são mínimos, a mesquinhez do que lhe acontece está sempre presente. Não é um herói antigo, é uma personagem de ficção moderna, com as misérias modernas e com a ironia como arma que utiliza para se defender do mundo.
Bloom, em 2003, não está já no mundo das grandes conquistas e das grandes descobertas colectivas. Bloom é uma personagem de ficção que age totalmente sozinho. É um individualista do século XXI.
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Ficam também as críticas, recolhidas do blogue do escritor:
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"O mais recente livro de Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, de que Vasco Graça Moura disse «é um livro extraordinário. Estou convencido de que dentro de cem anos ainda haverá teses de doutoramento sobre passagens e fragmentos» vai ser publicado em Moçambique, Angola e Brasil por editoras do grupo Leya. Nestes três países de língua portuguesa, o livro será lançado em Dezembro.
Entretanto, em Portugal o livro está a suscitar uma viva reacção da crítica. Veja a seguir algumas dessas reacções:
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«Uma Viagem à Índia é um livro que vai marcar com certeza, não apenas a História da Literatura Portuguesa mas provavelmente a cultura europeia» (Vasco Graça Moura, na apresentação da obra, CCB, 13/11/2010).
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«Este é um livro a muitos títulos surpreendente. Não pelo ineditismo ou pela novidade das peripécias, não por aspectos empolgantes da acção, mas, desde logo, pela maneira como, nele, caleidoscopicamente tudo se eleva à dignidade de literatura enquanto meio para retratar, talvez dizendo melhor, radiografar a condição humana.» (Vasco Graça Moura, na apresentação da obra, CCB, 13/11/10).
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«Uma Viagem à Índia, com consciência aguda da sua ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de mil textos-objectos do nosso imaginário de leitores. Como são todos os grandes livros, e este é um deles.» (Eduardo Lourenço, prefácio à obra)
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«É um livro cheio de fantasmas, fantasmas dos Lusíadas, fantasmas do homem contemporâneo, uma viagem, uma antiepopeia, e é um livro extraordinário. Estou convencido de que dentro de cem anos ainda haverá teses de doutoramento sobre passagens e fragmentos». (Vasco Graça Moura, «A Torto e a Direito», TVI24, 6/11/10)
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«Uma obra que o confirma como uma voz absolutamente singular da actual literatura portuguesa. […] Em quase uma década de publicação, Gonçalo M. Tavares, 40 anos, afirmou-se como um «senhor» da literatura. Ousou agora seguir o canto de Camões em Os Lusíadas, mas para narrar a odisseia de um homem simples nos tempos que correm. Uma Viagem à Índia, que acaba de publicar e que Eduardo Lourenço considera uma «navegação de alma pós-moderna», é uma verdadeira epopeia «mental». (Luís Ricardo Duarte e Maria Leonor Nunes, JL, 20/11/10)
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«Um texto que se faz a si próprio à medida que avança, desprezador dos códigos literários instituídos, dotado de uma filosofia do corpo […]. Livro absolutamente inolvidável por mais anos que se viva. Ou, de outro modo, um livro para a eternidade.» (Miguel Real, JL, 20/10/10)
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«Volume com uma ambição literária ímpar.» (Visão, 11/11/10)
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«Sob a forma de uma moderna epopeia (o que nem sempre coincide com uma anti-epopeia), ele é simultaneamente – e essa é uma das razões da sua grandeza – uma figuração interpretativa da época e uma teoria da forma do romance num mundo em que a realidade só fornece a esse género literário e à arte em geral, um terreno desfavorável, de tal modo que o problema central do romance é o fim das formas totais e acabadas. […] [Situamos Bloom na distinta família de que fazem parte o último homem de Nietzsche, o Monsieur Teste de Valéry, o Plume de Michaux, o Bernardo Soares, o Bartleby de Melville […] Mais do que uma personagem, é um princípio irradiante, nome da bloomificação do mundo. É a excelentíssima figura de um péssimo histórico, cultural e antropológico.» (António Guerreiro, Expresso, 6/11/10)
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«Uma Viagem à Índia é o momento mais ambicioso de uma obra pessimista que não abdica da memória e da exigência.» (Pedro Mexia, Público, «Ípsilon», 29/10/10)
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Ler - Dezembro