quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Onde vais, Valter Hugo Mãe?







Reinterpretar os clássicos

1.




Porto, 20 de janeiro de 1806


Não sei ao certo por que razão lhe escrevo esta carta, se já não está comigo. Cinco meses e dezasseis dias passaram e o sentimento que me invadiu o coração no momento em que o Senhor Simão me leu naquela carta que tinha partido demora-se no meu peito… ainda mais porque o tiraram de mim e eu estava longe! O Senhor Simão parece cada vez mais desolado. As notícias da menina Teresa são escassas, e já nem o brilho da abóbada que o alumia, nem o luar que ele respira, lhe alimentam a ânsia de chegar ao dia em que poderá sair daquele cárcere e a voltar a senti-los além daquelas grades. Costumava ir todas as noites procurar as suas estrelas no céu, com o pensamento em Teresa, que, segundo o que me contara, mantinha o apaixonado ritual. Mas não é cumprida a promessa há já três luas. E eu, que guardo em mim todo o amor que não posso viver com aquele que me chama “irmã”, não sei mais o que fazer para o esperançar… Ah, meu pai, se estivesse aqui como me poderia ajudar! … Só quero o bem daquele que amo. E se de tal feito só a bela fidalga é capaz, então eu rezo para que os dois amantes trespassem todos os embargos e consigam, finalmente, proteger-se um ao outro. Mas nem as minhas preces à Virgem Santíssima parecem ser ouvidas… No entanto, de algo tenho a certeza, meu pai: meu coração assim o diz. Este amor a que assisto é incurável. Simão e Teresa, ainda que as suas famílias não o consintam, amam-se incondicionalmente. Eternamente. E seja qual for o fado desta paixão, no fim terei a certeza que Simão amou, se perdeu e morreu amando. E que este é um verdadeiro amor de perdição. Ainda a refletir a fim de conseguir animar o Senhor Simão, suscitou-me, na manhã de domingo, quando atravessava o largo diante de cadeia da Relação aqui da cidade, a lembrança da menina Rita Castelo Branco, predileta irmã do Senhor Simão. Pobre rapariga! Deve estar tão receosa pelo mano, sem receber qualquer boa-nova… Lembrei-me de a convidar a visitar o parente, ainda que profanando a religiosa vontade de seu pai, o mestre Domingos Botelho. Mas como é situação demasiado arrojada, hesitei em comunicar-lhe a fantasia. Ainda assim, tal pensamento não terá sido em vão, pelo que me ocuparei a partir de agora de meditar sobre a ideia que, se bem sucedida, alegrará, com certeza, o Senhor Simão. Está já a aproximar-se o soar do sino. Está já a aproximar-se o momento de voltar para perto do homem que por amores morrerei. Faz-me falta, meu pai. Sem si, tenho apenas um fim: acompanhar Simão até ao seu último suspiro. Embora o que mais me apoquenta seja a incerteza dos rumos até ao desfecho deste romance. Ainda assim, acredito que o pai tenha ido ao encontro da Virgem Santíssima e que esteja a seu lado a olhar por mim e pelos dois apaixonados.
Com saudade. Sempre sua,

Mariana.
Daniela Santos, 11º C
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2




Cara Clarissa,
Espero que tudo esteja bem em Londres, que a tua vida seja a projeção dos planos que sempre tiveste para o futuro. Um destino bem delineado, com todas as linhas traçadas e todos pormenores meticulosamente pensados e repensados. Espero que a tua filha esteja com saúde e que continue a ser a pequena menina ajuizada que fora em criança. Mas não espero uma coisa: não espero que o teu casamento seja maravilhoso, não espero que sejas feliz presa a um homem que nem sequer amas. Não espero que esse senhor que dizes ser delicado e atencioso para contigo seja aquilo que aspiraste ter na vida. E digo-te mais: em muitos momentos, senti inveja desse homem que se deita contigo e contigo acorda todos os dias. Sei que ao leres isto não ficarás incrédula. Sei que não irás ficar surpreendida e, obviamente, nunca irias demonstrar tal sentimento. Afinal, as tuas ações respondem apenas a um guião, não sofrem de irreverência. Nunca tiveste um imprevisto, pois não? Não. Tenho a certeza de que nunca irias permitir tal evento. E, diz-me a verdade, amas realmente alguém? É que eu já amei tantas mulheres na minha vida. Sinto que o meu coração já viajou por muitos lugares. E, mesmo assim, nunca te esqueci. Em dia algum apaguei o teu sorriso da memória, um sorriso camuflado pela frieza que te acompanha. Em dia algum deixou de ecoar a tua voz na minha cabeça. Em dia algum se evadiu a tua esbelta imagem dos meus arquivos mentais. E sabes o que é mais curioso? É que a razão por que nunca te esqueci é porque nunca encontrei outra alma feminina que me atraísse pelo seu irreverente desprendimento ao mundo e àqueles que a rodeiam. Escrevo-te isto para te dizer que vou casar. Agora, sim, pressinto que ficaste perturbada com esta revelação. Encontrei uma mulher que nada tem a ver contigo, é doce como todas as manhãs de primavera, de uma beleza extraordinariamente comum, e é com ela que pretendo viver até ao resto dos meus dias. Preciso de paz e serenidade, aquilo que nunca me poderias ter dado. E, a partir de agora, nunca poderás. Não acho que isso te entristeça, acredito que nada disto te deixará perturbada. O que sinto é a tua revolta interior, por te saberes trocada por uma mulher que em tudo se inferioriza á tua altivez, por saberes que não a amo como te amo a ti, e mesmo assim já não és mais a minha escolha. Querida Clarissa, já nos conhecemos há tantos anos, e nunca te disse que a tua postura arrogante perante as situações e as pessoas que te acompanham só resultaram em algo de que irás aperceber no fim da tua vida. Irás morrer sozinha e abandonada, irás tornar-te escrava da tua insolência. Peço-te, sinceramente, que sejas feliz e que faças o mesmo pelos outros. E gostava de ter percebido mais cedo que, mesmo que me tivesses dado uma oportunidade para estar a teu lado, nunca te teria feito feliz. Nunca ninguém fez, nunca ninguém o fará.

Até sempre,Peter Walsh
Diana Falcão, 11ºD
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3.





Sampetersburgo, 25 de março

Querido diário,
Sabes como são aqueles momentos de indecisão entre saltar o abismo ou manter os pés em terra firme? Aquele sentimento de angústia a dominar o teu ser? Pois, eu hoje sinto-me assim… Penso que as pessoas só dão valor a algo quando o perdem. E o mesmo se aplica a mim! Nunca imaginei que um nariz fosse um elemento tão fulcral na minha vida. Agora que me separei dele, já compreendo a sua relevância. Sim, de facto, hoje o meu dia foi diferente. Acordei cedo, uma vez que os pássaros já entoavam as suas melodias matinais e, lentamente, pois não queria abandonar o conforto da cama, levantei-me para mais um dia neste mundo gélido. Porém, quando me encontrei à frente do espelho, petrifiquei. Por uns momentos, esfregava os olhos, e voltava a paralisar. Faltava alguma peça naquele “puzzle” de beleza humana…. O nariz! Aquele importante pormenor desaparecera ou desertara por algum motivo desconhecido… No entanto, a minha vida teve de continuar, com ou sem face completa. Mas como sair à rua sem que ninguém repare? Como falar com alguém sem que se indague sobre o que se sucedeu? Perante tantos dilemas e sem respostas que os solucionassem, decidi manter a rotina e avançar rumo ao desconhecido. Saí à rua, e a brisa atacou aquele incógnito espaço da minha cara. Aconcheguei-me no cachecol e continuei o meu caminho, passo a passo. Entrei numa pastelaria e pedi algo para me aquecer. O cachecol formou uma barreira entre mim e o café e, por isso, tive de o retirar. Não, não podia permitir que alguém me visse naquele estado. Paguei o café que não bebi e abandonei o estabelecimento. Refugiei-me em casa, com receio de que alguém me visse naquela abominável figura. Mantive-me encarcerado todo o dia, espreitando o mundo pela pequena janela do meu quarto. É impressionante como algo supérfluo, que por vezes tomamos por certo, nos prende a uma realidade na qual não queremos vaguear. Deixamos de ser independentes para vivenciar cada momento das nossas vidas com normalidade. Ficar sem nariz tirou-me a minha independência. E eu julgava-me dono do meu nariz!
Kavaliov

Fábia Alves, 11ºC
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4.

Crítica Literária

Uma Abelha na Chuva




Carlos Oliveira publicou esse livro, Uma Abelha na Chuva, no ano de 1953. O enredo baseia-se na relação estéril de um casal: D.Maria os Prazeres de Alva Sancho Silvestre e Álvaro Rodrigues Silvestre. A ação desenrola-se na aldeia de Montouro, durante um outono chuvoso, e é no decorrer da mesma que o leitor se apercebe de que Carlos Oliveira lança fortes críticas às injustiças existentes na sociedade e nas relações humanas do Portugal do século XX. É de notar a originalidade no começo deste romance: Álvaro Silvestre dirige-se à “Comarca” (jornal local) para implorar a publicação da sua confissão sobre todos os delitos que tinha cometido. Porém, essa confissão acaba por não ser publicada graças à entrada de D. Maria dos Prazeres. Durante o resto da narrativa, todas as personagens que entram em cena neste romance acabam, basicamente, por sentenciar os acontecimentos do dia a dia. D. Maria dos Prazeres, esposa de Álvaro Rodrigues Silvestre, foi, sem dúvida, a personagem que mais me marcou. Amargurada e descontente com o rumo que a sua vida tomou, vive constantemente infeliz e desejando outra vida para si. Nota-se, desde logo, que não nutre qualquer tipo de amor pelo seu marido e está, desde sempre, no casamento por obrigação. Sendo filha de fidalgos arruinados, a sua única alternativa era casar com um homem de uma família abastada. E assim foi. Para além disso, com o passar dos anos, um dos seus maiores desejos não se concretizou. D. Maria dos Prazeres nunca teve o seu tão desejado filho, aumentando, assim, o seu sentimento de fúria para com Álvaro. Durante a narrativa, são claros os seus sonhos com outros homens que cobiçava, no entanto, isto acontecia pelo simples facto de se demonstrar uma figura carente. Contudo, embora D.Maria dos Prazeres pense o contrário, Álvaro gostava realmente dela, algo que se vai revelar no final do livro. Na minha opinião, neste livro, as personagens desenvolvem uma espécie de metamorfose, pois as características que as definem no início do livro diferem das do fim. É, de facto, uma obra escrita com uma grande subtileza por parte de Carlos Oliveira. Será que toda a gente é quem parece? Para descobrir até à última linha…
Maria Inês Castro, 11º C




5. (Clicar na imagem, para ver o vídeo)




segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Natal no mundo

O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade

O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande

O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções

O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos
Uma estrela nos guiará
José Tolentino Mendonça

sábado, 17 de dezembro de 2011

Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe regressou ao Colégio Luso-Francês. O filho de mil homens e Quatro Tesouros são as suas mais recentes obras e marcam a maiusculização do seu nome, bem como a confirmação do talento com proporções de tsunami... Eis as impressões de uma inesquecível sessão intimista e comovente:













A sua imagem não era exatamente a que desenhava na minha mente, embora soubesse que a sua hilariante descrição se intitulava "gordo e careca". Ora, fiquei a descobrir que ele é bem mais que isso. Na minha cabeça, ele era um "cromo", era aquele que não entrava em lado nenhum sem o seu bloco e caneta, mas desde logo ele demonstrou que a minha conclusão era precipitada. Sabiamente, encontrou uma forma subtil de embelezar a sua aparência, sendo um "cromo" disfarçado, cuja máscara é o telemóvel, afirmando "namorar" numa eterna mensagem de interminável amor. Enfim, um homem "muito apaixonado".




Fosse quem fosse, não era quem eu pensava que ele fosse, era antes alguém que, procurando um fundo de "coragem" no seu auditório (ao qual insistia em que colocasse questões), o conquistou e cativou, motivando, pelo menos a mim, pessoalmente, não só à leitura dos seus livros, mas também ao desenvolvimento da escrita (nem que fosse, em último caso, por meio de aparelhos eletrónicos).
Ouvir as palavras de Valter Hugo Mãe foi uma enorme oportunidade, na medida em que conheci uma nova realidade e me motivou para, mais uma vez, "encher os meus bolsos de textos" e papéis espalhados por todo o lado, com ideias que simplesmente me vieram à cabeça.
Sara Martins, 11E





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José Saramago, por ocasião da entrega a Valter Hugo Mãe do prémio que ostenta o seu nome, apodou o remorso de baltazar separião de “verdadeiro tsunami literário”. A propósito destas palavras, disse o galardoado, numa entrevista recente: “como se eu, gordinho e careca, sozinho, nas Caxinas, pudesse ter inventado outra vez uma forma de falar português.”




Apesar da contrafactualidade conferida pelo conjuntivo, a verdade é que leitura do autor arrasta realmente consigo a necessidade de aprender a falar de outra maneira. Aliás, se pensarmos bem, qualquer metáfora que associasse a escrita de Valter Hugo Mãe a um fenómeno atmosférico se mostraria apta para a descrever. Um furacão, uma erupção, um sismo… Não são estes, afinal, apenas símbolos extraídos do mundo natural que visam colmatar as insuficiências concetuais para descrever o cavalgar de uma escrita que produz efeitos devastadores sobre qualquer solidez que a linguagem humana possa, aparentemente, oferecer? Dir-se-á que ensinar o leitor a pronunciar as sílabas de uma língua nova é apanágio de toda a boa escrita. E no entanto, em Valter Hugo Mãe, a procura pelo novo parece ser algo essencial – adjacente a uma modificação profunda do discurso da língua-mãe –, como um instinto genuíno que o guia na destruição e reconversão das formas, o que, aliás, se insinua desde os primeiros textos. O uso das minúsculas, o alinhamento tão estranho dos poemas à esquerda e à direita da página, o vocabulário radicalmente oscilante entre o erudito e o rasteiro não seriam já modos de perguntar à língua portuguesa o que, através dela, podemos dizer de novo?





Foi dando resposta a todas estas questões que Valter Hugo Mãe, de um modo tão próximo e tão informal, falou ao pequeno grupo que com ele se encontrou no auditório do colégio, na tarde do dia 7 de dezembro. Tendo como ponto de partida a poesia “desalinhada” na página, Valter, pela mão dos iniciados na sua escrita literária, recordou a sua estada em Paraty, no FLIP, falou do seu recente projeto de ajuda solidária ao serviço de Pediatria do HSJ, no Porto – Os quatro tesouros – peregrinou pelos seus romances e, sobretudo, fascinou e comoveu com uma irreverência que se estende à sua criação como artista plástico. Utilizando uma outra linguagem, as capas dos seus romances são jogos de uma criatividade concetual que podem passar despercebidas ao incauto leitor. Mas quem lê Valter Hugo Mãe não se pode descuidar e tem que estar atento a tudo – às palavras, às formas, ao jogo que os títulos dos seus romances se atrevem a (re)inventar - o remorso de mil homens, o filho de baltasar sarapião, a máquina dos trabalhadores, o apocalipse do nosso reino, a máquina de fazer mil homens…
Auxília Ramos e Hélder Moreira

sábado, 10 de dezembro de 2011

Texto descritivo - 8ºano




Seguem-se descrições em prosa dos alunos do 8ºano. O objeto de descrição é o sorriso de um colega.


Sobre a imensidão das trevas brota o fogo ardente do teu sorriso, e, na perplexidade de um momento, encontro a sua essência. O teu sorriso baila como uma pomba branca que quebra, com um leve esvoaçar de asa, o silêncio.
Sinto o devaneio das cores e luzes cintilantes, confundido na minha cabeça, e quando volto a mim encontro apenas uma simples mas complexa razão: o teu sorriso. Esse sorriso que desperta no meu olhar a vontade incontrolável de te ver; esse sorriso que não depende do tempo ou do espaço, mas de um instante que floresce dentro do teu ser.
E assim, digo, é na fragilidade do meu sentimento triste e esquecido que tu sorris.
Ana Filipa Braga


Vejo no teu sorriso o fresco sopro das manhãs. Quando sorris, iluminas as trevas de uma vida sem sentido. O teu sorriso é uma leve luz que envolve e me eleva à pureza de praias desertas. Ele é como uma onda que sussurra doces melodias, que me embalam sob a fria e rude noite. Sinto no teu sorriso uma carícia de mãe, que me consola debaixo da tempestade. No teu sorriso, nascem brancas margaridas, campos verdes e céu azul; é como um rio de Sol que corre dentro de mim. O teu sorriso amanhece sobre as trevas de um mundo confuso.
Sara Cunha


Sobre esta página em branco, tento descrever o teu sorriso. Um sorriso que desaparece no nevoeiro e que leva consigo a luz do amanhecer. Vejo e não vejo o teu sorriso translúcido que se resguarda no âmago do meu pensamento. Por vezes, viso uma luz por entre esta confusão e escuridão. Porém, por mais que tente pensar o teu estonteante sorriso, não consigo, pois outra imagem me ocupa a mente – uma outra chama, cada vez mais intensa. E agora que penso, afinal aquela luz com que pensava não era tua, mas de outro ser há muito esperado…
Gonçalo Maria


Refugio-me na minha essência a pensar no teu sorriso que brota da mais inocente pétala que esvoaça pelos ares e poisa no meu coração. A sua simplicidade faz-me voar até horizontes proibidos, e eu tropeço no sentimento perdido que desponta no teu rosto. O teu sorriso eleva-me à incomensurabilidade de um leve halo místico de pura e plena Natureza que soergue no meu corpo e trespassa o meu âmago. É como uma rosa que floresce entre a imensidão das trevas e cintila, comprometendo o meu olhar a todo o teu ser, porém totalmente entregue, fitando o fogo invisível que deixa transparecer o teu Sorriso.
Ricardo Seca


(Textos enviados por Hélder Moreira)

Ler - dezembro



domingo, 4 de dezembro de 2011

Livro do mês - dezembro


A análise da poesia de José Rui Teixeira apresenta-nos com clareza a consciência que se vem agudizando, sobretudo, nas antologias do final do século passado (década de 90) e nos primeiros anos do século XXI (nomeadamente, sob a organização de Jorge Reis-Sá, Ricardo Nunes e Manuel de Freitas), de que a Pós-modernidade se caracteriza por uma menor capacidade de inovação e de ruptura e uma certa tendência para a recuperação e regresso a programas estéticos do romantismo e simbolismo. A dita «poesia nova» ou «novíssima» (para enfatizar que a sua criação é de agora mesmo) só o é, em termos periodológicos e cronológicos, e não enquanto categoria epistemológica. Só pode ser encarada como novidade, no sentido em que toda a palavra poética é uma palavra nova e inaugural, conduzindo alquimicamente à verdade e ao Absoluto.
Sem que haja propriamente a noção de «geração literária»
, a poesia contemporânea pauta-se pela diversidade de discursos, pela segmentação e heterogeneidade, separando-se, por isso, do Modernismo e das Vanguardas, revelando uma postura mais nihilista e pessimista face à cultura e ao tempo. Esta espécie de alienação alimentada por um «pensamento frágil» (Lyotard e Vattimo) e a pluralidade são precisamente argumentos da Pós-modernidade.
Por outro lado, desenha um movimento de ênstase e de ênfase no sentido (Mircea Eliade), de mergulho na interioridade e de revalorização da experiência. Ressurge, novamente, a instância enunciadora e a subjetividade que lhe é inerente. Desta forma, a linguagem passa a interpretar a própria experiência, o próprio corpo, a própria interioridade, e acentua-se a tensão emocional do poema. Talvez por isso se possa afirmar estarmos perante uma poesia figurativa ou da experiência, pelo regresso anunciado ao lirismo figurativo, mais próximo da pintura.


Em José Rui Teixeira, este itinerário do silêncio e da solidão faz-se através do tema da morte. Partindo do pressuposto de que a morte revela a verdadeira condição humana, o poeta consagrará a sua escrita como estética do medo e metáfora dessa mesma morte. Algumas aporias foram levantadas: como representar a morte na obra de arte, se esta não foi diretamente vivenciada? Qual a relação entre a mulher, símbolo de fertilidade, e a morte? Ora, a escrita representa para o poeta a oportunidade de mortificação e de experiência de morte; além disso, a perda da figura materna permite-lhe, pela memória, recuperar e duplicar a dor sentida pela ausência e pelo vazio. Deste modo, é pela morte que o sujeito poético acede à reflexão metafísica e existencial, tomando o seu mundo interior como referência. A abertura fenomenológica só se consubstancia através da errância e do vazio. Uma outra leitura possibilita resolver a segunda aporia: a morte simboliza o profundo desejo de reintegração no ventre materno, a angústia da castração e a tensão libidinal acumulada.



Este último aspecto remete-nos para o papel da mulher nesta obra. Verificamos que há uma íntima relação entre mulher e morte. Mais uma vez, estamos no campo do dilema: como explicar que mulher e morte coincidam semanticamente? Assistimos a uma forte tensão entre a figura da mãe e a da mulher violentamente erotizada, entre a mulher que gera e alimenta e a mulher amante. Quer num caso, quer noutro, temos, mais uma vez, a relação com a morte. A suposta fertilidade de semas como “ventre”, “útero” e “sangue” remete, nesta poesia, para a ideia de vazio e de morte; na verdade, o homem só vive plenamente quando está dentro do útero e, portanto, o útero e o ventre contemplados de fora são símbolos do nada e da aniquilação. O mesmo acontece com as referências explícitas à sexualidade: o homem é expulso do corpo da mulher, com o mesmo ímpeto com que esta dá à luz e expele a criança. Fora da mulher, inicia-se a morte, há só morte.




Outro dos traços da sua obra é a sistemática citação da narrativa bíblica e a contribuição para uma "mitologia do sagrado", como apontou Fernando Guimarães. Em articulação com os evangelhos, o poeta procede a uma profunda reflexão escatológica, elegendo a sua poesia como “lugar de um conjunto de intuições teológicas”. Numa declarada atitude pós-moderna, José Rui Teixeira aproxima a religião da cultura. Através do mito, a realidade revela a sua essência (ontofania e epifania) e o sagrado torna-se a própria realidade. Enquanto religação, a religião surge aqui como símbolo de envolvimento do poeta com o sagrado e com o absoluto (teofania) e a mitificação como forma de conhecimento.
Paradoxalmente, encontramos poemas seus que soam como autênticos salmos e litanias e, simultaneamente, outros, que, numa operação de desconvencionalização dos símbolos bíblicos, se instituem como imagens-choque e autêntica subversão e dessacralização dos evangelhos. O sagrado é, assim, vislumbrado à luz do humano, do profano, não deixando, por isso, de ser menos sagrado; bem pelo contrário, encontrado o rosto humano (e feminino) de Deus, o poeta refaz a leitura bíblica através da recomposição mitológica, em que a sexualidade e o erotismo ( e a partir daí o resgate da mulher) são caminho de sacralidade. É todo um programa inaugural que abandona a visão do homem à semelhança de Deus e, num percurso inverso, passa a medir Deus (deus) à semelhança do homem.




Também em relação à linguagem e estilo se aplica aquilo que se concluiu sobre a tendência pós-moderna desta poesia, ao retomar e dar continuidade aos programas estéticos do romantismo e do simbolismo. De facto, verifica-se um tom melancólico e nostálgico, próprio da sensibilidade neo-romântica e uma certa predileção pela morte enquanto tema e semantema.
O vocabulário inusitado contribui para uma inegável e original renovação lexical, alterando a dicção poética tradicional. As imagens perturbadoras, e em certo sentido surreais, povoam um discurso extremamente pictórico e sugestivo que é produzido por múltiplas vozes (polifonia aliás enfatizada pelo recurso ao discurso direto e à inclusão objetiva de um interlocutor omnipresente). Destacamos, ainda, a expressividade das metáforas e dos símiles que perpetuam a rede temática (da morte).
A sintaxe concisa obedece à estrutura tradicional e apenas a pontuação parece perpassar a transgressão, ao esquecer intencional e sugestivamente o ponto de exclamação e de interrogação, deixando ao leitor um papel ativo na vivência emocional da entoação poética.
Finalmente, encerramos com as palavras de Miriam Reyes, ao posfaciar a edição de Assim na Terra , que parecem alcançar o enigma insondável desta poesia que “abre os olhos na escuridão”:

“Porque lo que escribimos es luz refractada. Es cierto, no puedo explicaros lo que he visto, también para leer hay que hundir la cabeza y abrir los ojos en la oscuridad”.