sábado, 28 de junho de 2014

Oito séculos de história da Língua Portuguesa

Em jeito de homenagem, deixamos o maravilhoso texto  de Hélia Correia sobre esta "Menina e Moça" com oito séculos.
O Testamento de D. Afonso II, o documento mais antigo escrito em português.













Menina e Moça

Ela não esqueceu nunca o tempo em que era uma camponesinha descarada que dançava debaixo de avelaneiras em flor. Ri facilmente e, ao menos pretexto, tira os sapatos, prende as saias com a mão, parte outra vez ao encontro da sua natureza que aceita mal a convenção e os arrebiques. Tem o latim por pai, é certo, mas um pai com barba vagabunda, alheio à higiene e às declinações. Herdou das mouras uma certa languidez, essa demora no olhar que indica a predisposição para o descuido nos pormenores mais práticos da vida. Atravessou-a o espírito dos Celtas. Está visto que haveria de nascer versejante e com algum defeito de maneiras. Creio eu que, como em todas as moçoilas, lhe resulta o desleixo em sedução.

Não se ajeita a discursos, a não ser que pisque o olho e sopre malandrice, sermoneando ao peixe em vez de ao homem, para que o homem se sinta mas não possa acusar o envio da censura. Mesmo no grande épico lusíada, vemos Camões a rir daquele marinheiro, Veloso de seu nome, que desceu em muito menos tempo do que o tinha subido um outeiro que escondia nativos assanhados. Por efeitos de história e crescimento, civilizou-se um pouco, entrou na corte, fez vénia às muitas modas chegadas do estrangeiro. Viu-se que sufocava no espartilho e que as anemias literárias, se vão bem com a frágil compleição das inglesas, só conseguem, à nossa, encardir-lhe as feições.

Grandes amores teve ela com Mestre Gil Vicente e foi esse um enlace sem igual na duração e na intensidade, e, mais, sem nunca um do outro se enjoarem, antes encherem de apalpões e viço as deprimidas salas palacianas. Mesmo nas ligações com gente lacrimosa, como era o caso de Camilo Castelo Branco, lhe escapa muita vez o estilo ao romantismo para retornar à mão em anca e à chacota. Se eu quisesse ser má, avançaria que não é ilusão das sombras este buço que vemos encimar-lhe o lábio superior. tem uma exuberância de corpo que não leva ao feminismo porque não precisa de ver filosofada a sua força. Há nela aquela espécie de ardor matriarcal que fez com que as melhores das nossas heroínas fossem bastante mais impiedosas do que qualquer guerreiro experimentado.

[...]

 Saiu para além do mar com os marinheiros, mas não entendeu nada do Império. O que quis foi dançar e misturar-se. Enquanto eles degolavam e ofendiam, ela deitou-se na frescura das palhotas e gerou promissoras combinações da espécie. Enquanto a missa e a lei teimavam no latim, ela, a menina do descaramento, espalhava as filhas pelo mundo fora, numa alegre e opulenta sementeira. Abriu os braços a fonemas e a deuses que eram até então estrangeiros e hostis mas nela se deixaram docemente fundir.

Enquanto a nobreza degenera, por secagem do sangue doçarias, a nossa mocetona continua trocando afeto em terra de África e Brasil, tomando e oferecendo, e outro não é o segredo da sua juventude. [...]

Hélia Correia, 12-06-1997, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (texto com supressões)