quinta-feira, 19 de junho de 2008

Oficina de Leitura 10ºAno

O texto que se segue nasceu na sequência de uma oficina de leitura e é um testemunho real de luta e de coragem de uma aluna. A Catarina fez questão de o assinar e de manter a sua identidade assinalada para poder ser útil a quem estiver a passar pelo mesmo. É uma memória violenta, dolorida, mas simultaneamente uma prova de determinação. Agradeço imenso, mais uma vez, o seu gesto.




Memórias
Diário de uma anorexia


Dois anos. Em dois anos passa-se tanta coisa…
Custaram-me estes últimos dois anos.Ninguém sabe o que é andar a saltar de médico para médico, de hospital para hospital, ouvir verdades duras e sentir olhares penetrantes que nos percorrem.
Eu sei o que isso é. Cheguei a ter três médicos a acompanhar-me. Ninguém sabe o que isso é. Um psiquiatra, um psicólogo e uma nutricionista que não mediam as palavras que me diziam. Fui obrigada a assistir a uma terapia de grupo de anorexia. Todas nós ali sofríamos do mesmo mal: a recusa dos alimentos. Nunca mais me hei-de esquecer daquela maldita terapia. Todas nós em roda a partilhar as nossas histórias e o médico no meio a fazer perguntas. Foi difícil para mim falar porque sempre fui muito discreta, no que toca a sentimentos. Não os partilho com ninguém e isso às vezes tortura-me. E nessa terapia tinha de falar. Quando chegou a minha vez, fiquei calada. Eu era a que estava pior de todas as raparigas. Quando a terapia acabou estive a falar com uma miúda que já não estava num estado tão crítico, mas que ainda tinha imensos problemas com a comida. Lembro-me perfeitamente da sua figura. Pareceu-me ser cigana e era muito bonita. Tinha uns cabelos negros, uns olhos escuros e tez morena. Tinha um corpo bonito. E eu disse-lhe isso. Os olhos dela ficaram contentes ao ouvi-lo.

As anorécticas conseguem ser muito más umas com as outras. O próprio médico me disse isso. É por isso que se evita normalmente o internamento. Lembro-me também dessa mesma rapariga partilhar e comparar comigo as suas quantidades de comida. As doses dela eram mais reduzidas que as minhas, e isso deixou-me irritada. Eu disse-lhe que nunca bebia água e nunca me hei-de esquecer do que ela me respondeu “ Se beberes água emagreces muito mais depressa”.Fiquei a olhar para ela. Como é que alguém me pode dizer isso, vendo o estado em que eu estava? Ela disse “emagrecer”?!
Com o tempo, acabei por ganhar uma infecção pulmonar. Quando fui tirar radiografias quem me acompanhou foi o meu pai. O médico falou com ele sozinho e deixaram-me cá fora. Com que direito? O pulmão é meu, a doença é minha, eu tinha o direito de ouvir da boca do médico tudo o que ele disse ao meu pai.

Saímos de lá num silêncio irónico. Então, com toda a coragem, perguntei-lhe o que o médico tinha dito. O meu pai virou-se para mim e disse: “Ou tu começas a comer, ou com esta infecção apanhas uma tuberculose e não resistes, foi isso que o médico disse.” Disse-me isto com os olhos encharcados de água. Não tive reacção e fiquei calada o caminho todo. Penso que a minha sorte naquela altura foi eu ainda não fumar e sair pouco de casa, senão podia ter sido fatal. Estava anémica também, portanto, não tinha defesas. Pela primeira vez na vida, soube o que era estar às portas da morte.
Estava cada dia mais fraca. Não conseguia sequer sair da cama de manhã. O Inverno era muito doloroso. Sentia-me a gelar. Entrei em hipotermia uma vez. Andava sempre ao pé dos aquecimentos e da lareira. À noite, parecia uma velhinha, usava botija de água quente, meias e cobertores. Se alguém normal tem frio, então imaginem eu com 33 kg!

No Verão, o calor escaldava-me o corpo. Não conseguia estar muito tempo ao sol. Como fui para a minha quinta fora do Porto com a minha mãe, abandonei o resto da família e os meus amigos. Só queria estar sozinha sem ninguém por perto. Nem queria falar ao telefone com ninguém. A minha mãe ia todos os dias para as aulas. A escola onde dá aulas fica relativamente perto da quinta. Aprendi a cuidar de mim sozinha. Cresci muito com esta doença. Tive que aprender a controlar e saber tratar de mim, tomar os medicamentos sem que me mandassem, a fazer as refeições sozinha. Levava uma vida de adulta. Qualquer problema que surgisse, tinha de ser eu a resolvê-lo. Passava os dias comigo própria. Entretinha-me a ler, a fazer tarefas porque nunca queria estar parada, ouvia música, ganhei o gosto pela arte.

E assim foi passando o tempo. Tinha de ir ao Porto para as consultas médicas. Passou a ser um ritual para mim. Pesar-me, ouvir médicos..Sentia-me mal com o dinheiro que os meus pais gastavam em médicos e em medicamentos. Um dia, fui a uma loja com a minha mãe e a empregada virou-se para mim e perguntou “Quanto é que vestes? É que qualquer dia desapareces, não há roupa que te sirva.” Eu fiquei chocada com as palavras destas estranha que nunca me tinha visto na vida. Virei costas e sai da loja.

Durante estes dois anos, fui muito mal-educada para muita gente, pois não suportava que pessoas que não me conheciam falassem assim. As enfermeiras dos hospitais deixavam-me doida. Engraçado como me lembro de cada palavras que me disseram naquela altura. Ficou tudo registado na minha memória. Uma vez, uma das enfermeiras começou a falar comigo enquanto eu esperava pela médica. Disse-me muitas coisas e eu sempre a fazer de conta que não era nada comigo. Ouvia dizer-me parvoíces como “ Sabes?..Comer é o maior prazer da vida” e eu, como sempre fui muito impulsiva, respondi-lhe antipaticamente “Só se for para si”. Os médicos também diziam coisas desagradáveis e muitas vezes levantava-me do consultório furiosa e vinha embora. Muitos médicos desistiram de mim, e quem me fez finalmente abrir os olhos foi o Dr.Pedro. Gostava dele. Tinha uma maneira diferente de me abordar. Conseguia lidar com a minha fúria e acalmar-me. Já a psiquiatra, coitada, procurava explicar os meus comportamentos com razões que eu achava parvas.

Lembro-me bem quando fui um dia com a minha mãe e com a minha irmã sair e, como estava um dia quente, vesti uma saia curta. Quando a minha irmã me viu, virou-se para mim e disse: “ Vais assim vestida? Olha para ti. Não tens vergonha desse corpo? Não saio assim contigo.”.Eu não tive reacção. Virei costas e comecei a chorar. Enquanto trocava de roupa ,ouvia a minha mãe a discutir com ela.

Foi complicado para mim controlar-me. Olhava para a comida e não conseguia simplesmente engolir uma única folha de alface. Quem nunca passou por isso não sabe o que é. Nem mesmo quem assiste de perto a esta doença sabe. Ouvia muitas pessoas dizer “Para te curares é só comeres.” Mas estas pessoas estão tão enganadas… Mesmo com vontade de me curar, a força da doença é bem maior. Não dá para ultrapassar a repulsa pelos alimentos. Tinha livros escondidos com as calorias de todos os alimentos, bebidas, de todos os pratos e sobremesas. Comprei também comprimidos para emagrecer. Tinha de os esconder muito bem para ninguém os descobrir. Arquitectava muitos estratagemas para não comer e enganar toda a gente.

Quando estive sozinha com a minha mãe, durante oito meses, na quinta, escrevia num diário. Tenho medo de o ler. Quando, por vezes, pego nele vêm-me lágrimas aos olhos… Encontrei nele um bilhete que uma vez a minha mãe deixou antes de sair de manhã para ir para a escola

Querida filhota ,
Hoje vou estar muito tempo na escola(é daqueles dias cheios de aulas.) Se precisares de alguma coisa, liga. Vê se cuidas de ti e não apanhes muito sol. Vai estar um dia lindo. Não te canses.
Ontem, foi um dia menos bom. Desculpa se disse ou fiz alguma coisa que te magoou. Mas é porque gosto MUITO de ti e quero que fiques boa.
Um beijo muito grande da mãe que te adora.
M.

Foi este o bilhete. Chorei ao ler. Li-o umas quatro vezes e ainda hoje o leio e recordo aquela noite anterior. Tinha escondido o feijão na banca e a minha mãe descobriu. Ligou à médica e fui obrigada a falar com ela ao telefone. Não abri a boca durante o telefonema. Ela obrigou-me a aumentar as quantidades de Fantomalt, um dos meus medicamentos. Consistia num pó com muitas calorias que me dava energia. Eu odiava bebê-lo. Desliguei o telefone na cara da médica e ouvi a minha mãe a falar com ela de novo. Estava com tanto ódio que num lapso de fúria atirei uma mesa com um candeeiro ao chão. O candeeiro partiu. Mas não me consegui conter. Nunca me mutilei como outras anorécticas fazem. Descarregava a raiva nos objectos e nas pessoas.

A minha mãe, para se informar melhor da doença, fez um trabalho sobre anorexia para o seu currículo. Escondeu-o de mim, mas eu descobri-o. E li. As últimas palavras introdução ficaram-me retidas nos olhos durante dias. E ainda hoje me vêm à cabeça: “ Não sei quanto tempo mais aguentarei ver a minha filha destruir-se e morrer aos bocados sem eu poder fazer nada.”. Talvez tenham sido estas palavras que me fizeram abrir os olhos. Nesse dia fui ao espelho e fiquei mais ou menos uma hora a ver-me. Não me reconhecia. Quem era aquela figura doente ali à minha frente? Não podia ser eu. Enquanto me via ao espelho vieram-me as palavras brutais do meu pai: “Nunca te hei-de perdoar por estares a destruir a nossa família.” Sei que ele não queria ter dito isto, mas magoou-me. De tal forma, que não esqueci e quis fugir. O meu pai levantava -se muitas vezes ás refeições quando eu ainda estava em minha casa. Dava-me muito bem com ele antes.

Uns meses depois os meus tios convidaram-me para ir passar um mês e meio em casa deles em Jersey. Mas só iria se tivesse já 40 kg. A minha mãe também prometeu comprar-me roupa para levar se já tivesse esse peso. Então, farta de ver os outros sofrer e de me ver a mim assim , comi. Comi,comi,comi. Tive que comer quantidades monstruosas para ganhar peso. Mas nunca voltei a comer doces nem comia sequer comidas fora dos parâmetros que tinha definido. Para verem ... o meu pequeno-almoço era três taças cheias de cereais e leite, a meio da manhã um pacote de bolachas integrais, comia depois muito arroz, frango, salada, fruta, por vezes, três iogurtes seguidos...já bebia água. E com estas quantidades demorou muito a ganhar peso. Um mês a enfardar e nada. No aeroporto, antes de embarcar, pesei-me naquelas balanças de moedas e tinha 39.800 kg. Deu para ir mesmo assim. Lá em Jersey continuava a pesar-me todas as semanas e mesmo assim por vezes ainda emagrecia. Comecei então a comer doces e coisas mais calorias. E mesmo assim não engordava. Ficava contente. E quando voltei, continuava a comer bem, até que um dia voltei ao peso normal.

Agora estou bem. Mas a minha mãe ainda guardou os medicamentos todos. Não digo que me tenha curado completamente, porque sei que posso voltar ao mesmo. Ainda tenho alguns preconceitos em relação aos alimentos. Pelo menos, curei-me da infecção pulmonar e sou feliz. Lembro esta fase da minha vida de forma positiva. Foi uma experiência que me fez aprender e crescer muito. Não a quero apagar do meu passado. Agora, o que quero é aproveitar todo o tempo que perdi…
Catarina Coelho, 10ºE

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Cão como nós...



Tinha prometido aos meus alunos do 10DE que no último dia de aulas levaria comigo o Gaspar, o culpado da minha pressa à sexta-feira à tarde, depois do toque. E a verdade é que o levei mesmo! Ausente mas presente... Já agora, para quem não abdica da companhia do mais fiel dos seres, deixo a sugestão: Cão como nós, de Manuel Alegre. Sensibilidade e humor... Recomendo vivamente.

Hoje terminaram oficialmente as aulas. Aproveito este espaço para agradecer a todos os alunos e colegas que estiveram envolvidos neste projecto durante este ano. Sem eles, este blogue não faria sentido; sem o seu entusiasmo, as suas sugestões e, sobretudo, sem as suas palavras, os seus contributos e a sua escrita, não existiria.


O Lusografias não vai, no entanto, de férias... Aguardarei com expectativa os textos que forem produzindo nos próximos tempos e lanço um repto: enviem as vossas memórias de viagem, as vossas páginas de diário, as vossas melhores fotografias, as vossas pesquisas e as vossas reflexões para eunicemaia@iol.pt Escrevam!


Em breve, terão também acesso, aqui, no sítio do costume, a uma lista de sugestões para a leitura de férias.


Acrescento ainda que a marca Lusografias se expandiu ao 1º e 2ºCiclos. Para conhecerem os textos dos mais novos:



quarta-feira, 4 de junho de 2008

Oficina de escrita - 10ºAno

O prometido é devido... Aqui deixo os melhores textos produzidos neste período, na oficina de escrita, e que só hoje tive hipótese de postar.








Memória de Viagem I

Argentina

Durante a nossa vida, fazemos várias viagens e passamos por vários sítios, mas apenas alguns têm o dom de nos marcar irreversivelmente. Exemplo disso foi a minha viagem a Buenos Aires.
Parti com entusiasmo, já que a Argentina, o país azul celeste, sempre me fascinou. Quando aterrei no aeroporto de Ezeiza, a vontade de conhecer e viver aquela cidade era tanta, que senti a principal metrópole argentina sufocada pela minha vontade e entusiasmo.
Ao sair do aeroporto, localizado a trinta minutos do centro de Buenos Aires, já senti aquele agradável aroma a tango que me invadiu as narinas e despertou a minha veia argentina. Defendo há muito tempo que todos temos um pouco de cada nacionalidade e de cada país e naquele momento, a minha veia argentina estava bem saliente e marcada na minha pele que já ganhava outra cor, devido ao sol argentino, que brilha de maneira diferente, com mais intensidade.
No aeroporto apanhei um táxi que me levou ao meu hotel, em frente ao emblemático edifício do Congresso argentino, no centro da cidade-bailarina. Pelo caminho, reparei em todos os pormenores e pessoas, nas estradas e nas placas que indicavam o caminho para o meu sonho, nas árvores, naquele azul celestial que marcava toda a paisagem e no supracitado sol. As pessoas causaram-me um sentimento de inveja. Passavam apressadamente por sítios fantásticos que eu me sentia deleitado por poder contemplar. É normal no ser humano não dar valor àquilo que tem.
Fiz o “check-in”, subi apressadamente e abri a porta do quarto 156, e depois de um banho para retemperar forças da viagem e da emoção de estar em Buenos Aires, saí para começar a minha visita àquela cidade mágica. Mal coloquei o pé na calçada argentina, senti uma sensação de liberdade indescritível. Nunca experimentei a sensação de ir ao Paraíso mas certamente não será muito diferente daquilo que eu senti.
Durante três dias, absorvi uma cidade com quase 3 milhões de habitantes e vi e senti a cultura pela primeira vez, ora na Recoleta onde fiz compras, ora no bairro de San Telmo onde vivi grandes noites, ora no bairro de Palermo onde corri nos magníficos jardins pintados de verde, como se a cidade fosse uma tela de Picasso. Soube como era possível misturar grandes edifícios com casas pobres e degradadas, sem que a cidade perdesse com isso e senti também que aquela gente era feliz mas não tanto como eu fui naqueles dias.
No último dia, visita obrigatória ao bairro de La Boca, onde passei pelo Caminito, rua que mistura casas rústicas, de todos os tipos, feitios e cores e onde assisti ao super jogo do futebol argentino, o apaixonante Boca Juniors “versus” River Plate, as duas equipas de Buenos Aires. Quando parti de Portugal já levava uma admiração pelo Boca mas posso dizer que saí da Argentina com o azul e o amarelo (cores do clube) na palete de cores do meu coração.
Nas últimas horas e enquanto assistia ao par Ramón e Paloma a dançar o tango num dos bares do bairro de San Telmo, pensei em Sophia e na sua frase: “Há cidades acesas na distância”.
João Barros 10ºD



Memória de Viagem II

Cabo-Verde

“Há cidades acesas na distância” e há cidades que se apagam no esquecimento. Sal, em Cabo Verde, é uma delas.
Estava-se em pleno Agosto e uma maresia abrasadora atravessava a multidão enraivecida, desesperada, que tentava sair daquele minúsculo espaço por uma minúscula porta.
Sentado no autocarro, observo o olhar fixo dos adultos e depois observo as crianças, que com o seu toque inocente se sentam na relva a observar o céu, limpo e azul, sem caixas cinzentas nem placas metálicas a taparem-lhes a vista, não, só eles e o céu.
Continuo a minha viagem no banco de trás, encostado à janela. O cheiro a maionese polui-me as narinas impedindo a passagem do aroma proveniente das salinas. Uma vista deslumbrante sobre os montes virgens onde não habitava vivalma… Erguiam-se grandes estátuas brancas, imponentes na altura, uma neve falsificada que dava frescura ao cenário tórrido.
Já é noite, estou na varanda de um bar e um miúdo inglês exclama de emoção: “ Look mommy, I´ve never seen so many helicopters in my life”. A mãe carinhosamente sorri e tenta explicar que aqueles holofotes são estrelas, puros pedaços de terra suspensos no céu que reflectem a luz do sol.
Estou nesta ilha há quatro dias e, tal como eu, muitos outros turistas ainda não saíram da praia.
O meu pai, um curioso apreciador de paisagens, decide levar-nos à cidade em si, uma cidade sem luxos e com cheiro a lagosta pairando nas ruas. Visitámos vários locais, incluindo um que me despertou a atenção. Era uma simples rua, cujos passeios eram placas sobrepostas, com pavimento feito de terra e pedras das obras - um ambiente assustador que violava as sensíveis palmas dos pés pretos. Uma rua pobre, uma rua cinzenta, que contrastava com o sereno e saudável mar.
Era a minha antepenúltima noite e preparei-me para a aventura que se avizinhava. Posso afirmar que tive a melhor refeição de sempre; uma lagosta que sabia a mar, pescada no próprio dia nos mares de Cabo Verde.
O sabor salino fez-me recordar fotografias mentais de paisagens que gravei na minha mente. Estava no paraíso.
Amanhã parto para o Porto, mas hoje foi sem dúvida o dia mais emocionante: uma viagem de moto - quatro à volta da ilha. Comigo ao volante, a areia movia-se rapidamente em rodopios de valsa. Após ver tubarões e tartarugas, parei a mota e sentei-me com o meu pai numa confortável duna. Ao nosso lado, uma carcaça de tartaruga gigante completava aquele cenário magnífico, digno de fotografia. As ondas quentes subiam a montanha de areia atrevendo-se a molhar-me os pés, o sol dançava com o ventre num remexido ciclone de sabores e cheiros. À ida para o hotel acelero a fundo e maravilho-me com a imagem virgem da paisagem: toneladas de areia preenchem o mar onde nenhum tom de verde se avista.
Luís Ramos, 10ºC






Auto-retrato I

Foco-me no espelho… Nos olhos castanhos e perdidos mais especificamente. Serei mesmo eu, ou será algum retrato daquilo que eu sou? É estranho olhar para mim sabendo que aquele sou mesmo eu… Mas pedi à imaginação que me retratasse. Já não sou só eu afinal.
Vejo-me sereno e sorridente e o branco dos meus dentes contrasta com a tez morena que preenche todo o oval rosto. O meu sedoso cabelo castanho assemelha-se a um mar de terra que acolhe a testa marcada pelo acne juvenil. Nesta parede arredondada sobressaem as pensativas sobrancelhas que colidem com um pequeno e arrebitado nariz, lembrando a junção do rio e do mar. Os meus lábios sinceros e misteriosos criam um sorriso atrevido e sorrateiro, que coabita com as maçãs delicadas do rosto. No final do rosto esguio, ergue-se o queixo arredondado e pequeno e o pescoço tímido.
Marcelo Guedes, 10ºD


Auto-Retrato II

O reflexo olha para mim, observa-me; uma expressão séria e serena, talvez um pouco curiosa, mas sempre neutra. O cabelo cor de carvalho, quieto e estabilizado, está pousado numa cabeça quase esférica.
Da cara do meu reflexo, dois olhos avelã fitam-me, em castanho vivo, coroados por duas modestas sobrancelhas ligeiramente arqueadas. Olhos vivos e penetrantes. A testa bem exposta, ladeada por duas têmporas arredondadas e doridas. Um nariz robusto absorve e expulsa o ar de forma ruidosa (pois naquele dia estava eu engripado). Uma boca roxa e carnuda sorri entre dois “parênteses” formados pela tez nívea. As maçãs, suaves e vincadas, definidas incisivamente nos flancos do rosto, convergem num queixo pequeno, onde por vezes uma barbicha se pendura. O pescoço, rígido, suporta a cabeça como uma coluna dórica, conectando-a ao centro de dois ombros médios. A pose, ora nervosa, ora calma, avisa o próximo sobre o meu estado de espírito – e até a mim.
David Conceição, 10ºE


José Saramago: A Consistência dos Sonhos




Recebi um mail da Drª Auxília Ramos a propósito da exposição sobre Saramgo. Deixo esse testemunho:



A consistência dos sonhos … ou a sua materialização através da palavra?
Foi assim que entendi a exposição sobre a obra do Nobel português, José Saramago, e a demonstrá-lo estão as imagens que o meu olhar fixou nessa visita.
A palavra é, sem dúvida, a matéria-prima desta exposição e assume tão diversas expressões quanto a personalidade do seu autor: palavra-registo escolar, palavra-experiência poética, palavra-teatro, palavra-arma política, palavra-crónica jornalística, palavra-saudação aos amigos, palavra-registo quotidiano, palavra-crítica mordaz, palavra-agradecimento público, palavra-emoção, palavra-pedrada no charco, palavra-polémica, palavra-intervenção social, palavra-insubmissão, palavra-conto infantil, palavra-memória, palavra-alegoria dos tempos… e tantas outras que percorrem e ilustram o friso cronológico que orienta o visitante no seu percurso pela Galeria de Pintura do rei D.Luís I, no Palácio da Ajuda, em Lisboa.
Esta exposição é mais uma prova do que Saramago afirma «Eu nunca separo o escritor do cidadão». E é este o eixo central da exposição, a indissociável ligação entre aquele que escreve e aquele que sente a realidade do seu país (e do mundo), expressando-a sob a forma de um comprometimento muitas vezes incómodo, mas autêntico, porque sentido. Não será pois de estranhar as palavras de Pilar del Rio, quando diz que Saramago «escreve para se fazer amar».


Auxília Ramos