sábado, 24 de maio de 2008

Retrato 10ºAno

Mais um retrato... Filipe Girão por João Barros

Do alto da sua torre de controlo que Deus lhe deu e com aquele olhar que sempre mantém entre o distanciamento e uma envolvência profunda e sufocante, está sempre atento a tudo, mesmo que uma observação rápida não o permita perceber.
De tez morena, minada pelos percalços da adolescência, olhos tímidos num espelho da personalidade e cabelo preto que esconde as orelhas que não fogem à normalidade. Num sorriso que surge qual D. Sebastião nos dias do nosso nevoeiro, pousado nos lábios finos e branqueados por uns dentes que são o fiel retrato da pureza.
Faz da elegância um posto, da sua altura uma mais-valia num retrato pintado com cores alegres e vivas, embora a observação possa trair (novamente) essa percepção e opinião. O facto de a observação nos poder “trair” não é um capricho desta, mas sim uma prova viva da simplicidade e da elegância com que este bom gigante encara a vida.
Em suma, é como o sol, nem sempre se vê, mas a verdade é que está sempre lá.
João Barros, 10ºD

domingo, 18 de maio de 2008

Tributo a Zélia Gattai




Sábado, 17 de Maio, fui confrontada com a notícia: “Morreu a escritora brasileira Zélia Gattai, aos 91 anos.”
Zélia Gattai esteve casada com Jorge Amado durante 56 anos, até 2001, ano da morte do famoso autor de várias obras internacionalmente conhecidas, entre as quais Gabriela Cravo e Canela e O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá.
Após a morte do marido, Zélia Gattai abriu a casa onde viveram, na Baía, ao público com o objectivo de dela fazer um museu – Casa do Rio Vermelho.
Autora de vários livros, incluindo livros de memóriasA Casa do Rio Vermelho (1991), Jorge Amado – um baiano romântico e sensual (2002) e Memorial do Amor (2004) – relatos que recomendo a quem gosta de narrativa memorialista, destaco a primeira obra que li de Zélia Gattai, Um Chapéu para Viagem (1982), uma homenagem sentida a Jorge Amado pelos seus setenta anos. Transcrevo o testemunho da autora sobre a obra:

Achei que presente melhor não podia lhe dar do que o relato da minha convivência com seus pais e seus irmãos, num período extremamente fecundo de nossa vida, de 1945 a 1948.
Assim nasceu este livro, no qual comecei a trabalhar em 1980 e que só agora consegui concluir, tendo sido muitas vezes interrompida pelas contingências da nossa vida, sobrecarregada de viagens e compromissos. Escritos e revisados os originais, faltava título que os encabeçasse. Optei por Um Chapéu para Viagem, já que o livro começa com uma viagem e termina com outra, viagens fundamentais em minha vida. Para cada uma delas ganhei um chapéu, dois belos chapéus que impressionaram e inquietaram Lalu (mãe de Jorge Amado, D.Eulália Leal Amado), preocupada que me dessem “quentura na cabeça”. Em verdade, na hora de partir de S.Paulo para o Rio de Janeiro e ao deixar o Rio para a Europa, em ambas as viagens tinha a cabeça quente, estourando. Não devido ao chapéu, é claro!”



Neste livro, o leitor poderá encontrar, pelo olhar e voz da “moça paulista”, filha de imigrantes italianos, “com uma veia agitada pelo sangue da lenda anarquista da Colónia Cecilia”, autores portugueses como Ferreira de Castro e Alves Redol, com quem o casal Amado se relacionou em Paris.
Se de algum modo poderei homenagear a escritora Zélia Gattai Amado, será, certamente, pela motivação à leitura da sua obra. Boa leitura! Se quiserem saber mais sobre a Fundação Jorge Amado, acedam ao site:


Auxília Ramos

José Saramago - 12ºAno


Memorial do Convento, de José Saramago

Recebi mais um contributo dos alunos do 12ºAno, que me foi enviado pela Drª Auxília Ramos. Aqui o deixo:

É fruto de uma proposta de trabalho lançada à turma, após o estudo de textos seleccionados de "Memorial do Convento" que evidenciavam o comportamento dos dois pares "amorosos" do romance. Foi pedido aos alunos que fizessem uma reflexão pessoal sobre este percurso pelo romance, tendo em especial atenção dois aspectos: a condição feminina e a vivência do amor. Este trabalho é um dos resultados dessa reflexão. Adiciono também o site sobre a exposição de Saramago que contém alguns videos interessantes: http://www.imc-ip.pt/exposicao-saramago/a_exposicao.html
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“Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher”

“D. João (…) irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” – Assim começa, em Memorial do Convento, uma busca desesperada de suas Altezas por um herdeiro real: D.Ana a espalhar rezas, enquanto o rei espalha bastardos.
A rainha é um mero instrumento de produção de sangue azul. O rei sobe para a cama da rainha como quem inicia um baile, e abandona-a da mesma maneira. Não dormem juntos, não falam, sabe-se que representam um dos muitos modos de “juntar um homem e uma mulher”, o que os une é por procuração. Ele não lhe confia “a casa” e ela ocupa-se com missas e novenas intermináveis, “devota parideira que veio ao mundo só para isso”. Ao aparecimento de uma filha, “não se pode ter tudo”, logo se apercebe que nascer príncipe não é o mesmo que nascer princesa.
A rainha guarda os sonhos sem que passem disso mesmo, parca de ocupações e temas de conversa com as aias, é vigiada pela família à distância e nunca adormece sem o cobertor da Áustria, com saudades de casa.
A verdade é que nem da desforra das carnes que as mulheres comuns comungam na Quaresma pode D. Ana desfrutar, por estar grávida e ser rainha, e, enquanto outras se afogam em leitos desconhecidos, a rainha adormece no meio de uma avé-maria, acompanhada pelo coro das aias.
O rei ocupa-se do reino, da mulher pouco.
Estes dois vivem de formalidades, em que tudo é como um baile, sem gestos espontâneos ou emoções. Mesmo com todas as missas, não se livraram da falta de afecto.
Mas D. Maria Ana é caso único entre as mulheres de Portugal da época. As outras fazem-se acompanhar pelas criadas “de igreja em igreja”, na Quaresma, não têm aias que rezem com elas durante a noite e o mais provável é que não façam dos seus leitos um baile. As mulheres do povo falam, aconchegam segredos por entre as esquinas, (afinal são as conversas delas que “seguram o mundo na sua órbita”), também vão a missas, mas não perdem uma festa, e correm pelos filhos e maridos quando estes são levados para Mafra – “Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha”… Impotentes, é o atributo que melhor as caracteriza perante “quanto pode um rei”.
Com Blimunda e Baltasar, “já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades”, entre as lides do campo, a construção da passarola e a recolha de vontades, há sempre espaço para que Baltasar, do seu lado direito da enxerga, ampare Blimunda com a mão que lhe resta. Pouco tempo sobra, é claro, para rezas, mezinhas e missas, e no entanto afecto não lhes falta.
No dia em que se conheceram foram baptizados pelo sangue virgem de Blimunda, e não é heresia dizê-lo, porque estes dois vivem mais de Deus pelo amor com que se têm, do que suas Altezas reais com todas as avés-marias rezadas. Mesmo sendo dos que se conhecem pela revelação de uma condenada, Baltasar e Blimunda são felizes na sua religião do silêncio – “não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.”
Vivem de uma relação de amparo, ele sossega-a na sua maldição de ver por dentro as pessoas, ela ajuda-o na falta da mão – “chegando ela, acaba-se a rebelião, Ainda bem que vieste, diz Baltasar.”
Dão-se num olhar, as palavras são frias e desnecessárias no meio de todos os gestos.
Um homem e uma mulher, dois corpos, duas almas, duas vontades. Os corpos amam-se pelas vontades, e as almas assistem, como fora dos corpos.
E, de manhã, Blimunda dobra a manta com que se cobriram na manjedoura, “apenas uma mulher repetindo um gesto antigo”; é de gestos antigos que alimentam o seu amor ancestral, porque se houvesse diferença entre esse e a “santa missa”, “a missa perderia”.
Entretanto “Está luar”, e “toda a gente sabe que a noite tem outro cheiro quando faz luar”…
Francisca Pereira, 12º E

terça-feira, 13 de maio de 2008

Poesia do século XX - 10ºAno

Miguel Torga e "Bucólica"
Poema dito por Ruy de Carvalho



Auto-retrato 10ºAno


Os alunos por eles mesmos (Oficina de Escrita dedicada ao auto-retrato):

Diria que o que mais me caracteriza é o meu rosto, daí que seja dele que parte o meu auto-retrato.
Olho-me ao espelho e fixo os meus olhos, tão profundos e escuros, tão atentos, que quase fazem esquecer a testa de um palmo de altura, onde vivem a expressividade e as suas marcas.
Desço. Um nariz bem pequeno, equilibrado e pontuado pelo sinal que mora bem no seu centro. Mais perfeccionista? Complicado... As bochechas de tez morena desfazem-se na boca. Essa, lá em baixo, é enérgica, pequena, avermelhada, nada espessa. Ah! O sorriso não desenha covinhas, o que é um infortúnio...
O cabelo, comprido, é uma tela de castanhos que vai ocultando a testa com a sua franja, muito escalado e irritado com a ondulação.
Sobrancelhas arqueadas e escuras, pestanas grandes e certas, maçãs do rosto que nada confessam: esses são os toques finais.
O meu nome? Íris, de alma e coração.
Íris Vasquez, 10ºC



Distante, etéreo... Muitas vezes, ilustre!
Nos olhos, o verde desafia a esperança.
Na boca, rosa, gorjeios de criança
E na aura, o mistério que a tudo resiste!

É tímido o jeito com que enfrenta e insiste,
Mas corre-lhe nas veias o ardor da mudança
Ilude quem pensa que, por pouco, se cansa
É homem - guerreiro! Não teme, nem desiste.

Libertino em sonhos, excessivo em emoção,
Umas vezes frio, outras tantas vassalo da paixão
Sensível aos afectos, porém esquivo...

Eis a minha humilde pessoa,
Descrita singelamente por mim.
Os outros que o façam vezes sem fim
João Pedro Santana, 10ºC



Olhar sincero, apaziguador
Vejo assim o mundo, sorrindo.
Pele morena, cabelo sonhador,
Rio, sorrio e vou persistindo.

Na vida que me faz caminhar,
Rosto redondo, amante do Mundo
Que me enche o suave olhar,
Nariz pequeno, expressivo, profundo.

Orelhas despercebidas, sobrancelhas arqueadas,
Lábios finos, repletos de mimo,
Maçãs do rosto rosadas

Sonho e amo a vida
Sempre com sabor a mel...
Na vida e na morte assim sou: Isabel!
Isabel Sousa, 10ºC



Cabelos pretos e lisos,
Nariz pequeno e proporcional,
Testa franzida em três pisos,
Personalidade deveras emocional.

Olhos azuis, verdes ou cinzentos,
Sorriso sincero e atraente,
Lábios carnudos que causam lamentos,
Será razão destes tormentos?

Postura calma, transpirando concentração,
Olhar enigmático mas intenso,
Transmitindo dedicação.

Coração azul, ritmado,
Ondas, sol e amigos o mantêm animado.
Mas poderá por isso ser condenado?
Diogo Banha, 10ºC

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Retrato 10ºAno




O nome desta menina é Sharbat Gula, é afegã e foi descoberta pela objectiva de um fotógrafo da National Geographic em Junho de 1985. Sharbat tinha então 13 anos e o seu olhar enfeitiçou o mundo. Na altura, para Steve McCurry era só mais um rosto captado pela lente da máquina, mas toda a gente queria saber mais... Em 2001, Steve dirige-se novamente ao Afeganistão, desta vez, para dar um nome e uma identidade ao rosto. Numa demanda árdua, encontra finalmente Sharbat, com 29 anos, casada e mãe... a menina tornara-se mulher, ignorando que o planeta inteiro a conhecia.




Deixo o vídeo que relata essa busca, com a chancela da National Geographic:




domingo, 4 de maio de 2008

Memória de Viagem 10ºAno

Viagem sem sair do sítio


Viajei num dia de chuva. Madrugada madrugante, e eu, madrugadora. Blocos negros pesavam nas mãos. Levava o cansaço a roer-me a vista e o sono a destruir meu equilíbrio. Repentinamente, ouvi daqueles apitos irritantes dos aeroportos. Din, din, din. Seguido da voz desinteressada "Avisamos os passageiros do voo 2B70 que se podem dirigir à entrada A". Éramos nós. Arrastei-me pelo detector de metais e, três quartos de hora depois, entrei no avião. Viagem estafante que me cansou até à medula. Dormi toda a viagem. Acordei com o embater das rodas no asfalto.


Já bem acordada - era impossível não o estar depois daquele chinfrim - desci de novo para a "confusão aeroporteira" e corri atrás das malas. Todas presentes. Finalmente fora do aeroporto. "Táxi" em todas as línguas que se imaginam nos livros. Entrei nos estofos cardados de podridão e ouvi o senhor a dizer coisas que não me interessavam, a uma velocidade a que nada se percebia, sobre pessoas que não conhecia. Parou no hotel pretendido, estendendo as mãos por uns pedaços de papel verde. Hotel luxuoso sem dúvida. Candelabros de oiro e sofás de prata. Sophia e Mello Breyner dissera "Há cidades acesas na distância", pois eu adaptei: "Há hotéis acesos na proximidade". Dirigi-me ao homem que se erguia hirto atrás do balcão. Ditei-lhe meu nome, mas ele garantiu-me que não tinha nenhuma marcação. Deve ter pesquisado no Google - eu bem vi através do vidro - quem eu era e, quando descobriu, sorriu e ofereceu-me desculpas dirigindo-me ao melhor quarto do edifício.


Estava esgotada. Fechei a porta e caí na cama. Não parecia ter passado um único segundo até acordar. A minha cama não era a mesma e o quarto havia-se apertado. À porta, estendia-se um corredor com uma porta que dava para a casa de banho. Espantei-me com as escadas, pensando que deveria estar mesmo a dormir no dia anterior, pois nada parecia pertencer ao hotel onde me hospedara. Arrastei-me para a cozinha onde comi algo que subtraí do frigorífico. No exterior, esperava-me um Mazda escuro com um homem familiar ao volante. Calcei-me e entrei no carro. Sem mais demoras, fui levada a uma rua. Um alto edifício, quatro andares talvez, construía-se ao meu olhar. Entrei. Um homem fardado pede-me um cartão e indica o sítio por onde o devo passar. Só tinha um, espero que tenha sido o certo. Mais uma vez lutei na multidão enraivecida entre corredores de gente e livros de estudo.

Joana Durão, 10D

sábado, 3 de maio de 2008

Menção Honrosa em Concurso Literário

A Ana Filipa Redondo, do 10ºD, obteve uma Menção Honrosa num Concurso Literário. Deixo, com orgulho, o texto, como forma de homenagem:



O bom amigo de Maria

Eu era um livro, só mais um conjunto de páginas com uma capa, que nem sequer bonita era, igual a tantos outros.
Houve um tempo em que era mesmo somente mais um livro pousado na estante da sala de alguém, esquecido no tempo e coberto de pó. E não tinha eu tudo para ser um dos livros da fila da frente, frequentemente retirado e lido como se fosse a primeira vez? Afinal fora escrito por Eça de Queirós, era “Contos”, e fazia parte do programa escolar no 9ºano, e sabia-o porque a filha do Senhor Ferreira comentou várias vezes que só estava a ler aquela "seca" por ter sido obrigada pela senhora Professora de Português (ela dissera “stôra”, mas eu prefiro não ir nessas modernices). Portanto, além de não ser um livro muito requisitado, era também uma "seca".
Não sei onde os jovens de hoje em dia vão buscar estas novas palavras, que nem nos dicionários constavam. O meu amigo Laranja, alcunha baseada na cor da sua vistosa capa, que é um dicionário do século XIX, dizia, quando ainda estávamos na mesma fila, que nas suas páginas a palavra "seca" não tem o mesmo significado de "maçada".
Mas a Joana não gostou das histórias que lhe tinha para contar e rapidamente me abandonou no fundo da estante dos seus livros, deixando à minha frente biografias de gente famosa e outros livros do género “Como deixar teu cabelo perfeito”. E assim era antes a minha vida.
Num dia condenado a ser mais um da minha triste existência, fui subitamente acordado por uma forte luz. Já não via tanta luz desde que Joana tinha terminado as suas aulas de Português sobre os meus contos e isso sucedera-se há dois longos anos. Escondi as minhas páginas o mais que pude atrás da grossa capa que me protegia, tal como uma tartaruga na sua carapaça. Senti alguém a mexer nos livros à minha volta até que uma pequenina mão me retirou do meu triste lugar e me pousou no seu colo.
Tinha cinco anos e era a filha mais nova do Senhor Ferreira, o filho do homem que me tinha comprado. O longo cabelo liso caía sobre a minha capa à medida que a sua cabeça se debruçava para me ver melhor. O primeiro pensamento que tive quando vi Maria foi o perigo que o pó acumulado em mim constituía para o seu lindo cabelo.
Começou a folhear-me e conseguia sentir novamente a alegria de ser aberto, tocado por alguém. Os seus dedos pequeninos percorriam as minhas páginas sem parar muito tempo e comecei a perguntar-me o que ela procurava. Era evidente que ainda não sabia ler e os seus olhos abriam-se cada vez mais a cada página passada. Mais tarde aprendi a admirar aqueles grandes olhos, sempre curiosos, a observar tudo e todos.
Fechou-me, mas não da maneira descuidada e até zangada da irmã, mas com uma leveza que até a mim me surpreendeu. Transportou-me cuidadosamente nas suas mãos até à porta da biblioteca, onde eu havia passado a maior parte do meu tempo até ser, como costumava pensar, raptado por Joana. Bateu duas vezes e uma grossa voz respondeu do outro lado. Soube logo quem lá ia encontrar.
Lá estava o Senhor Ferreira, entre montes e montes de folhas cheias de cálculos complicados que até eu, um livro tão vivido, não conseguia decifrar. Era contabilista e trabalhava numa grande empresa em Lisboa, mas só lá ia uma vez por mês, já que morava em Tomar. Quando ainda me encontrava na biblioteca, ouvia-o muitas vezes tratar dos seus assuntos por telefone ou pela internet, o que sempre achei muito suspeito. Naõ era eu que confiava num homem que via uma vez por mês!...
Lá entrámos, eu ainda bem guardado entre as mãos e o peito dela, e Maria dirigiu-se ao pai. Acabava por ser um quadro caricato, pois ela quase se tinha de pôr em bicos de pés para o ver, ainda mais entre tanto papel.
-Papá?
-Diz Maria, mas rápido, que o pai está cheio de trabalho!
Típico do Senhor Ferreira. Para ele o trabalho estava acima de tudo, e nem o olhar doce da filha mais nova mudava essa atitude.
-Eu encontrei este livro no quarto da Joana e queria perguntar-te se o posso levar para o meu quarto.
O pedido era tão estranho, que ele até levantou os olhos do livro que estava a estudar, com um ar confuso. Também não estava a perceber bem o que se passava. Para que é quê uma criança de cinco anos iria quer um livro como eu, que nem imagens tinha?
-Por que é que o queres? Ainda não sabes ler, filha.
-Pois não, mas tem uma capa bonita e... e.... oh pai, deixa!
Ainda desconfiado, o senhor Ferreira lá anuiu e com um gesto despachou a filha, dizendo que tinha mesmo de acabar aquele livro.
Apesar da pouca atenção dispensada pelo pai, Maria saiu da biblioteca com um sorriso na cara e foi a saltitar que se encaminhou para o jardim. Era esta a parte mais bonita da casa, o jardim.
Lembro-me como se fosse ontem do dia em que cheguei à casa dos Ferreira, e desde essa altura que não se tinha modificado muito. Continuava a ser um antigo palacete rodeado de campo, mas não demasiadamente longe da cidade, como notei quando ia na pasta de Joana para a escola. Tinha vários quartos e a cozinha ainda era daquelas que possuía uma copa. A casa no seu conjunto era uma beleza, mas o jardim chegava a ser um sonho.
Grande, com uma fonte no meio e uma vista incrível, era um excelente sítio para se ler. Era aí que o senhor Ferreira, pai do actual dono da casa ou, como eu digo, o meu senhor Ferreira, passava o seu tempo de leitura. A mim levou-me muitas vezes e sempre que me lembrava destes tempos sentia novamente o que era ser importante para alguém.
Foi para esse mesmo jardim que Maria me levou, passados tantos anos. As suas mãos eram parecidas com as do avô, diferindo, obviamente, no tamanho. Tinha os dedos finos e suaves e, ao virar as páginas, não dobrava as folhas. Parecia sempre que uma brisa tinha passado e, acidentalmente, a folha se tinha virado.
Sentou-se debaixo do enorme chorão que se encontrava num dos extremos do jardim e, estranhamente, aproximou-me do seu nariz.
-Tens um cheiro diferente dos outros livros que já cheirei, mas diferente é bom, sabias? Toda a gente diz que eu sou diferente, mas eu não me importo, porque se isso quer dizer que não sou como a minha irmã, tudo bem. Já viste o que era conseguir chegar à idade dela e ser assim? Nem valia lutar por isso.
Não percebia por que falava comigo, mas o sentido das suas palavras era-me muito claro. Se eu tivesse leucemia, lutasse para viver mais anos e acabasse como Joana também pensaria que não valia a pena.
Ah, ainda não vos tinha dito, pois não? Prefiro nem me lembrar muito deste facto, põe-me sempre deprimido e custa a passar.
Foi diagnosticada leucemia a Maria logo aos quatro anos, mas nem o precoce diagnóstico a podia ajudar muito. Desde essa altura que toma medicação e vai ao hospital regularmente. Há tempos em que está muito bem, outros em que, subitamente, tem uma quebra e é levada para o hospital.
Ainda me lembro dos dias em que o avô de Maria me lia enquanto pesadas lágrimas lhe escorriam pela cara, e era sempre quando a menina tinha de ficar no hospital.
Estava tão absorvido nestes pensamentos, que nem tinha reparado que Maria continuava a falar.
-... e eu sei que não sei ler, mas sabes que eu ouvi na televisão que um livro é um bom amigo, por isso resolvi que precisava mesmo era de um livro. Podia querer brincar com crianças da minha idade, pensas tu, mas já estou farta que elas pensem que eu não consigo participar nas mesmas brincadeiras que elas. Não, prefiro um amigo que me ouça. Sabes que as crianças da minha idade não gostam muito de falar. Também é verdade que não há muito a dizer sobre a nossa vida, mas isso é porque nós ainda somos muito novos e não conhecemos o mundo, como dizia o meu avô. Eu queria conhecer o Mundo; se pudesse, viajava para aquelas terras de que o avô falava nas histórias que me contava. Não sei se ele alguma vez te contou alguma, se calhar sim porque ele passava muito tempo contigo, não era? Reconheci-te logo. E o avô tinha bom gosto, és um bom livro. A tua capa é muito bonita e tens um cheiro mesmo fixe. Se calhar não é a palavra ideal para descrever o teu cheiro mas não sei bem o que dizer. Nunca nenhum dos meus livros cheirou assim. E tu não tens imagens, só palavras. Eu ainda não sei ler, mas sei uma palavra que aparece muitas vezes em ti. Sabes qual é? É "loira". O avô estava sempre a chamar-me isso e eu um dia pedi-lhe para me mostrar como se escrevia e decorei!
Tinha uma felicidade tão inocente no rosto, que até dava vontade de chorar, se conseguisse.
Maria falava, falava e o facto de eu não poder responder não parecia importar. Pelo contrário, referiu muitas vezes que falar comigo era a melhor parte do dia e que era um óptimo ouvinte.
Contou-me imensa coisa. Entre os seus repetidos ‘sabes’ e ‘quês’ descobri que foi procurar um livro à estante não só pelo que ouviu na televisão, mas também porque queria ver se decorava mais algumas palavras. O seu desejo de ler era tão grande como o medo de não ter tempo para o fazer. Repetia várias vezes que podia não chegar a ter tempo de ir à escola, que quando menos esperasse podia ir ter com o avô. Era a sua maneira de se referir à morte e várias vezes me interroguei se tinha sido boa ideia contar tanta coisa a Maria. Concordo que ela devia saber algumas coisas sobre a sua doença, mas o conhecimento total sobre as consequências que daí advinham surpreendiam-me. Ela também sabia, por exemplo, que dentro de pouco tempo iria deixar de ter cabelo e apercebi-me pela sua voz que era uma das coisas acerca da doença que mais lhe custava.
Tornei-me quase como o seu diário. Sabia o que Maria mais gostava e o que mais a irritava. Sabia os seus medos e desejos. Sabia que amava a mãe, que tinha imensas saudades do avô e que se sentia triste por o pai nunca ter tempo para brincar com ela. Sabia que não se dava bem com a irmã e que não percebia como ela se podia queixar tantas vezes da escola, quando o que Maria mais queria era poder ir para uma e aprender “coisas sobre o Mundo”, eram as suas palavras. Sabia que nunca tinha visto o mar e que era um dos seus maiores desejos. Cheguei também a saber que adorava observar o céu à noite e que acreditava uma das estrelas ser o avô, tal como o Sol, quando lhe batia na cara, era ele a dizer-lhe olá ou a consola-la quando se sentia triste.
Maria tinha uma sensibilidade que nem pessoas cinquenta anos mais velhas tinham. Via o Mundo de uma maneira muito própria e curiosa. Observava tudo o que se passava, abrindo muito os olhos quando alguma coisa a espantava, tal como vez quando me abriu pela primeira vez.
Um ano passou desde aquele dia em que fui retirado da estante poeirenta, e Maria foi para a escola aprender a ler e escrever. Ficou desiludida quando viu que nem um mês, nem dois, nem três chegaram para ela conseguir perceber as minhas histórias. Mesmo que conseguisse, acho que nunca lhe diria que eu era um livro demasiado complicado para a idade dela. Liguei-me ainda mais a Maria do que ao meu Senhor Ferreira, e não queria que ela desistisse de mim.
Era uma relação de dar e receber. A menina tirou-me da solidão, das filas de trás esquecidas da estante. Devolveu-me a luz do dia e a alegria de ser folheado mesmo que, neste caso, não fosse para ser lido. Para Maria eu era o ouvinte que, entre as pessoas, ela nunca conseguiu encontrar. Era o bom amigo a que o comentador da televisão se referira.
Normalmente, ia com ela para o hospital, quando tinha consultas ou ficava internada. Quando era transportada de emergência não a acompanhava imediatamente, mas ao outro dia vinha-me sempre alguém buscar à mesinha de cabeceira dela.
Houve um dia, sensivelmente dois anos depois de conhecer Maria, em que ninguém me veio buscar. Passou um dia, dois, uma semana, duas semanas... e nada. Comecei a temer o pior e a confirmação chegou-me pela voz de uma das empregadas da casa que contava à outra como estavam o patrão e a patroa depois da morte da filha mais nova.
Fiquei em choque, com o pensamento totalmente paralisado. Não podia ser possível. A minha Maria não podia ter morrido, não era verdade. Apesar de parte de mim já estar à espera desta notícia, sempre tinha continuado a ter esperança de ver Maria entrar de repente no quarto a reclamar que ninguém me tinha levado para perto dela no hospital.
Nesse momento, foi o meu fim. Meses depois comecei a lembrar os sonhos que Maria não tinha cumprido. Nunca viu o mar, nunca foi a um parque infantil, nunca conseguiu fazer um grande amigo na escola, nunca foi a uma visita de estudo, por causa das consultas no hospital, e, acima de tudo, nunca conseguiu compreender as histórias que as minhas páginas contavam.
Voltei a ser um livro esquecido no tempo e nas filas mais escondidas das estantes da casa dos Ferreira e nunca mais vi a luz do sol, nem o magnífico jardim, nem o sorriso inocente de Maria.
Ana Filipa Redondo