quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O último dia do ano...

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PASSAGEM DO ANO
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O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,
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Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.
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O último dia do tempo

Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...
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Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
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Teu pai morreu, teu avô também.

Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo.
Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.

O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.
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Surge a manhã de um novo ano.

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As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
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Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Livros do mês - Cabaz de Natal

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Neve preta
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Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem o lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam o trabalho.
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Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, enfim, os transes por que todos nós passamos. De repente… Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho é não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?“Porquê”, pergunta a professora, em voz alta, à criança: O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: “Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”.Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?”
José Saramago (Deste Mundo e do Outro)
in O RIBATEJO, 19 Dezembro 91

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Musicografias

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Dei por mim estes dias a pensar que nós, portugueses, e eu, em particular, não valorizamos a cultura brasileira. Frequentemente por desconhecimento, mas também por algum desdém fruto de, nas nossas mentes, os brasileiros ainda serem de algum modo apenas os colonos pouco relevantes que deixámos na terra que (petulantemente) dizemos que descobrimos. Ou talvez se prenda com o facto da minha geração ter crescido apenas com a imagem do Brasil que nos chegava pelas telenovelas. Mas o país de Niemeyer, Luis Fernando Veríssimo, Clarice Lispector (já aqui falada), Chico Buarque, Tom Jobim, e muitos, muitos mais não pode, claramente, ser entendido como um deserto cultural, mas como um meio muito rico cultural e intelectualmente falando.
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A minha escolha deste mês vai para uma música de Chico Buarque, que se questiona como somos, porque somos, e porque nem sempre nos reconhecemos no que fazemos. Chama-se "O que será": "feita para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", a canção "O Que Será" tem três versões, que marcam passagens diferentes da trama: "Abertura", "À Flor da Pele" e "À Flor da Terra". Cantada no filme por Simone, a versão "À Flor da Terra" (três estrofes de doze versos) alcançaria grande sucesso na gravação de Chico Buarque e Milton Nascimento, que abre o LP Meus caros amigos. "O Que Será", em qualquer das versões, é uma obra-prima, no nível das melhores criações de Chico Buarque, com sua melodia forte e sua letra libertária, um tanto ambígua em certos aspectos: "O que será que será / que todos os avisos não vão evitar / porque todos os risos vão desafiar / porque todos os sinos irão repicar / porque todos os hinos irão consagrar..." Em 15.9.92 (...) declarou ao Jornal do Brasil: "acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar..." [cfr www.chicobuarque.com.br]Pois então, o que será?
Joaquim Silva


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Feira do Livro 2009

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O cenário...
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A inauguração...
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A sessão com o escritor Richard Zimler (23/11)
Alunos do secundário
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A dramatização de O que queres ser, Bruno? (25/11)
Pelos alunos do 9ºA, para os meninos do pré-escolar
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Sessão com a escritora Luísa Fortes da Cunha (27/11)
Alunos do 5ºAno
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Sessão com a escritora Madalena Santos (27/11)
Alunos dos 8º e 9º Anos
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Nota
Faltam ainda as imagens das sessões com os escritores Carlos Campos (1ºCiclo) e Ana Saldanha (6º e 7ºAnos), que conto ainda publicar.
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Feira do Livro (23 a 27 de Novembro)

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A Feira do Livro do Colégio Luso-Francês terá início no dia 23 de Novembro, segunda-feira, com uma sessão inaugural que contará com a presença de toda a comunidade educativa. Será uma cerimónia recheada de surpresas e de diferentes manifestações artísticas. Na Feira estarão representadas as editoras Leya (Caminho, Dom Quixote, Novagaia, Gailivro, Asa, Texto Editores...), Porto Editora, Cosmorama, Trinta por uma linha, Bertrand e, ainda, a Livraria Britânica.
Durante a semana, o Colégio receberá escritores e ilustradores em todos os Ciclos:
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Pré-escolar: dramatização da obra O que queres ser, Bruno?
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1ºCiclo - escritor e ilustrador Carlos Campos
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2ºCiclo (5ºano) -escritora Luísa Fortes da Cunha
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2º Ciclo (6ºAno) e 3ºCiclo (7ºAno) - escritora Ana Saldanha
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3ºCiclo (8º e 9º Anos) -escritora Madalena Santos
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Secundário - escritor Richard Zimler
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Ler - Novembro

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Richard Zimler
«Só os maus livros têm nacionalidade»
No seu novo romance, Os Anagramas de Varsóvia, o escritor que nasceu em Nova Iorque mas vive em Portugal há mais de duas décadas, volta ao tema do Holocausto, tendo como pano de fundo a sua própria identidade.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Inéditos de Fernando Pessoa

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Um artigo interessante, dedicado a Fernando Pessoa. Publicado na revista Ler e sugerido pela Drª Isabel Moreno. Aqui. Vale mesmo a pena!...

Filme do mês - Novembro

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O Delator, de Steven Soderbergh
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A crítica de cinema assinala a interpretação de Matt Damon como merecedora de um óscar. Não me atrevo a fazer considerações dessa natureza, mas apenas a deixar o meu ”olhar” sobre o filme. A personagem Mark Withacre, quadro superior de uma empresa de produtos alimentares, cresce e evolui aos olhos do espectador. Homem aparentemente honesto, preocupado em denunciar um crime empresarial, urdido por esquemas pouco escrupulosos sobre preços de mercado, Mark Withacre veste progressivamente a pele de um ambicioso incontrolável que a todos (incluindo o FBI!) engana, num jogo desconcertante de mentiras/verdades.
O filme oferece muito mais matéria que do que o simples rótulo de “típico thriller político-económico” quer anunciar. É uma amostragem do comportamento humano na figura de um homem que, numa clara ambição de poder e riqueza, vai revelando a identidade de um mitómano, em cuja mente verdade e mentira não se distinguem, em cuja mente ecoa uma voz que raras vezes é coincidente com a voz que os outros ouvem.
Contrariamente aos comentários correntes, aconselho O Delator. Aqueles que se interessam por psicologia, pela análise do comportamento humano, encontrarão, no desempenho de Matt Damon, um manancial de situações, de manifestações comportamentais que poderão ilustrar, por exemplo, os distúrbios próprios de um doente bipolar.
Ficamos à espera dos vossos comentários.
Auxília Ramos

Musicografias

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Dizem as gentes que "filho de peixe sabe nadar". Não sei se podemos extrapolar para "sobrinho de cantor sabe cantar", ou até "sobrinho de lutador sabe sonhar". Talvez a genética explique alguma coisa, mas, não sendo um cientista (no restritivo sentido experimentalista), acredito que a alma não se herda, nem é, sequer, estanque. Só assim, para mim, podemos pensar num sobrinho do Zeca Afonso, a cantar em Português, mas com alma Moçambicana. João Afonso saiu de Moçambique com 13 anos, em 1978, e consegue uma simbiose lindíssima da paisagem africana com a paisagem portuguesa. "Buganvília", o tema que proponho este mês, é de um álbum de 1997, chamado "Missangas". Lembro que quando me foi mostrado o achei muito bonito, porque na caixa do CD trazia espalhadas algumas missangas, que faziam um som a recordar o das maracas ao mexer. Talvez por causa destes dias de Verão de S. Martinho antecipados, este mês me tenha apetecido ouvir a buganvília "entre o acender da lua / e o encanto da manhã", e lembrar-me dos dias grandes do Verão.
Joaquim Silva
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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Pessoa(s) - 12ºAno

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Pedimos aos alunos de 12º que analisassem a génese da heteronímia pessoana. Eis alguns resultados apresentados em turma (um vídeo e um texto):
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Ana Catarina Rodrigues, 12C

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Carta de Fernando Pessoa ao seu
Semi-heterónimo Bernardo Soares

Lisboa, 13 de Junho de 1930

Meu caro Bernardo Soares,

Finalmente chegou a oportunidade de poder falar contigo, agora que cheguei fatigado do escritório. Muito me apraz teres-te lembrado do meu aniversário, pois do teu dificilmente me recordaria, tão ocupado que estou com a minha pessoa, que uma não é (como de certo o sabes), mas quatro em simultâneo.
Não será ousado eu pensar, Bernardo, que hoje me visitaste de madrugada, quando estava abandonado às insónias? É que no silêncio do meu quarto pareceu-me adivinhar a tua figura sentada à minha secretária, iluminada pelo luar. Foi então que exclamei: “Ora viva! É o meu amigo Bernardo!”. Como não obtive resposta, convenci-me de que, para não variar, a minha imaginação me pregara uma partida. Ainda assim, fiquei com a sensação de que havias tentado comunicar comigo, e foi com satisfação que li a tua carta de parabéns. Bem sei, contudo, que o teu objectivo era o de compreenderes o porquê de teres sido excluído do meu círculo de heterónimos, não obstante o prefixo semi- que te concedi por compaixão.
Sendo hoje o meu quadragésimo segundo aniversário, que te parece que enquadre a génese dos meus heterónimos na história da minha vida? Estou certo de que concordas. Pois bem, nunca te apercebeste de algo omnipresente em ti, uma característica que fizesse parte das tuas raízes, e que em última análise condicionasse toda a tua personalidade? Não posso dizer que os meus primeiros anos foram miseráveis: a morte do meu pai abalou-me, como seria expectável, mas em compensação tive o amor da minha família, principalmente da minha mãe. Mesmo assim, o mundo extrínseco, ainda que agradável, sempre me pareceu insuficiente. Havia uma miríade de pessoas que poderia ter conhecido, diálogos que porventura teria trocado... E, olhando para o passado, reparo que a simplicidade da infância, que deveria contentar qualquer criança, constituía para mim um desperdício de sensações. E então, quase inconscientemente, passei a olhar a realidade por um certo prisma, prisma esse que elevava a vida simples de um menino a um mundo onírico, onde qualquer lacuna era preenchida com amigos imaginários.
Se me vires a atravessar o Chiado ou a trabalhar no meu escritório, consegues adivinhar o que se passa dentro da minha mente? Certamente que não. Uma pessoa nunca espera entrever um neurasténico (defino-me como tal, embora não saiba ao certo o que sou) num homem calado e de bons modos. O silêncio não significa necessariamente paz de espírito; pode estar a mascarar, inclusive, algo mais profundo. O que acontece é que, quando a oportunidade vem, o meu olhar volta-se para dentro. Olho para as coisas sem as ver, pois estou ocupado a assistir ao meu monólogo interior. E eis que, sozinho na plateia, vejo claramente três homens distintos a desfilarem pelo palco da minha mente. A ambiguidade desta situação acentua-se quando tomo consciência de que, neste instante, não sou uma, mas duas pessoas: o espectador e o actor. Respeitando as leis da cronologia, surge o Ricardo Reis, médico portuense, de estatura baixa e semblante sério, e que vive no Brasil desde 1919 por ser monárquico. Curiosamente, ele apareceu por acaso. Erro meu! Os meus «eus» nascem em mim com um propósito; eu é que, por vezes, não o desvendo à primeira. Depois de escrever uns poemas de cariz pagão, senti-me estranho. Não tinham muito a ver comigo, e ainda bem, pois assiná-los com o meu nome seria plágio. O Ricardo apareceu para expressar uma visão estoicista da vida, uma reflexão abstracta que conduzia à consciência da nossa efemeridade. Estás confuso com este jogo de máscaras, Bernardo? Uma coisa te digo: primeiro, estranha-se; depois, entranha-se. Agora irei falar do meu Mestre (meu, do Ricardo, e do Álvaro, o qual mencionarei a seguir). Uma conversa com o meu amigo Sá-Carneiro desencadeou uma série de acontecimentos que levaram à criação do pastor Alberto Caeiro. Duvido que exista pessoa mais ignorante que ele, e por isso mais feliz na sua ignorância. A sua atitude faz-me lembrar a de uma criança, pois ama o mundo que observa sem qualquer reserva. Por vezes me espanto, pois parece impossível que seja eu o autor da sua filosofia do não pensar. Não é contraditório? Ele morreu há mais de uma década, mas a sua figura ainda simboliza para mim o que eu nunca conseguirei ser. É por sermos tão opostos que ele é o meu Mestre. Como discípulo, tento seguir-lhe as passadas, ainda que saiba que nunca o vá alcançar. O outro heterónimo é o engenheiro naval Álvaro de Campos, meu gémeo nesta fase final da sua vida. O Álvaro representa, digamos, a faceta da minha personalidade que procuro esconder, o histerismo no seu expoente máximo. Todas as minhas emoções fortes (e algo vergonhosas, diga-se de passagem) são abafadas e, assim, canalizadas para um sítio aonde ninguém tem acesso excepto eu.
Tens de compreender, Bernardo, o que te diferencia destas três personalidades. Quando escrevo de modo espontâneo como Caeiro, intelectual como Reis, ou extravagante como Campos, o meu ser fluí pelas suas identidades livremente. Pintei o quadro das suas vidas, moldei os seus traços psicológicos e físicos, enfim, contornei nitidamente o que inicialmente eram formas indefinidas.
O que são estes três homens senão a expressão de posições opostas sobre a vida, a estética, e a literatura? Já te apercebeste, Bernardo, de que esta diversidade tão grande de mentalidades reflecte a minha multiplicidade interior? A vida, por vezes, é tão vazia de conteúdo e de pessoas que se torna necessário simular outras vidas para experienciar o que me passa ao lado. Ser complexo, Bernardo, permite-me ser todos, e, assim, nenhum. Os heterónimos representam o nada que é tudo. Sem eles, o vulgar e solitário Fernando Pessoa deixa-se subjugar pelo tédio.
É nestes devaneios e angústias existenciais que a fadiga incentiva que eu recorro a ti, Bernardo, um pobre ajudante de guarda-livros. És como uma muleta, um estado de quase inconsciência, um andar ausente pelas ruas de Lisboa. Careces de vida autónoma, meu caro amigo (não quero que te sintas diminuído por isto!).
Concluo a minha carta com um pensamento profundo, bem ao teu gosto. A Arte tem fim na própria Arte. A actividade literária dos meus heterónimos busca a beleza estética que só eles tornam possível.
Espero que te tenha esclarecido quanto à tua condição de semi-heterónimo.
Cumprimentos,
Fernando Pessoa.

PS – Obrigado pelo manuscrito que me emprestaste do teu “Livro do Desassossego”. Apreciei particularmente este fragmento, reflecte precisamente a angústia de me saber sempre só: «(…) De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.».
Filipa Alves Santos, 12B

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Escritaria - um testemunho

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Domingo à noite, o Museu Municipal de Penafiel (que eu não conhecia) encheu-se de centenas de pessoas para ouvir José Saramago e assistir ao lançamento “mundial” do seu último romance Caim. Assinalo com aspas «mundial» da mesma forma que Saramago, a propósito do evento, referiu, ironicamente, que não via, na sala, a presença de jornalistas do New Yorker

Penafiel foi, pois, palco de um acontecimento mundial, no seio de um acontecimento literário – Escritaria, 2º festival literário, um acontecimento que trará, indubitavelmente polémica, porque polémico foi o discurso de Saramago. Lembrei-me, ao ouvi-lo, das palavras de Pilar del Rio – "a grande literatura é sempre provocatória" – pois todas as referências do romancista a Caim revelam-nos uma nova incursão de Saramago no universo da(s) religião(ões), uma incursão claramente provocatória. O romancista referiu-se à Bíblia e, principalmente, ao Antigo Testamento como um “livro de maus costumes”, um livro em que a crueldade, a violência, a disputa são por demais evidentes nas várias narrativas que o integram. Acrescentou que “não inventa nada”, apenas “levanta pedras do caminho para que o leitor possa ver o que está por baixo delas”, lançando um apelo explícito a que cada um de nós possa, livremente, reflectir e analisar todo o mal que a religião (qualquer uma) fez à humanidade. Para Saramago, Caim “é um exercício de liberdade”, liberdade para o personagem e para ele próprio, enquanto escritor – “A liberdade do ser humano assim o exige.”



A encerrar o seu longo discurso, Saramago leu as páginas iniciais do romance como motivação para a leitura que, no seu dizer, irá certamente divertir o leitor, e prometeu um novo livro para 2010.



Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama

Indubitavelmente uma leitura polémica, mas certamente uma leitura que possibilitará a liberdade de cada leitor se posicionar criticamente sobre o seu conteúdo, qualquer que seja a sua crença religiosa.
Auxília Ramos
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E uma outra visão, sobre a polémica que estas afirmações causaram. Via José Rui Teixeira e Equinócio de Outono, fica o comentário de Tolentino Mendonça:
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José Tolentino Mendonça, director do Secretariado Nacional da Pastoral Cultura, manifestou à Agência Ecclesia a sua "desilusão" com a obra Caim, novo livro de José Saramago, que considera uma releitura "banal" do texto bíblico, longe das "páginas magistrais" de John Steinbeck em A Leste do Paraíso ou da interpretação do filósofo Paul Ricoeur da fraternidade como "decisão ética".
A obra ficou envolta em polémica quando o autor, a propósito da apresentação mundial do livro, afirmou que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana".
"A perplexidade trazida pelas afirmações de José Saramago é, no fundo, como é que um grande criador, um grande cultor da língua, pode, em relação a um superclássico da literatura mundial – património de cultura diferentes, fonte de inspiração para tanta literatura – pode dizer da Bíblia, com o simplismo e o olhar com que o fez, as coisas que Saramago tem dito", atira o director do Secretariado Nacional da Pastoral Cultura.
Tolentino Mendonça lamenta que, em Caim, José Saramago escreva que a Bíblia é "o livro dos disparates". "É uma redução inaceitável, não só do ponto de vista da fé, mas do ponto de vista da cultura", defende. Saramago é um leitor que "revisita permanentemente a Bíblia", seja em citações, seja nas suas personagens, mas o resultado desse esforço na sua última obra é, para o sacerdote madeirense, "absolutamente uma desilusão".
"Esperar-se-ia muito mais da revisitação que um grande escritor pode fazer do texto bíblico", indica, considerando que o livro de Saramago é, "em grande medida, um texto banal". A Bíblia está aberta a várias leituras, crentes e não crentes, mas nem todas são válidas.
O exegeta e poeta manifesta "perplexidade" por Saramago não tomar em consideração a necessidade de uma "interpretação" do texto, tomando-o à letra, "no seu absurdo". "O que impressiona neste opção é ele recusar que aquele texto precisa de uma interpretação, de uma leitura simbólica", declara. José Tolentino Mendonça realça que a Bíblia "é um livro de fé, que é lido a partir dessa perspectiva por milhões de pessoas, e ao mesmo tempo um livro de literatura, um superclássico".
Nesse sentido, é necessária "uma compreensão da Bíblia enquanto texto literário para verdadeiramente chegar ao seu sentido", é preciso "ir à terra do poeta", como se referia no Vaticano II, perceber que há "um sentido segundo, terceiro, que não se pode ler de forma literal e unívoca, que os géneros literários são para respeitar".
O sacerdote considera ainda que as declarações de José Saramago sobre Deus e a Bíblia estão muito marcadas pela ideologia do escritor, mais do que por uma tentativa de "recriação profunda das temáticas abordadas nos textos bíblicos".

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Parabéns, Agustina!

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Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante, em 1922. A família do seu pai era do Norte do país e a sua mãe era espanhola.

Viveu durante a infância e adolescência na região de Entre-Douro e Minho e depois em Coimbra até 1948. Casou em 1945 com Alberto de Oliveira Luís. A partir de 1948 fixou residência no Porto.

Começou a escrever aos 16 anos e em 1950 publicou o seu primeiro romance, “Mundo Fechado”. O reconhecimento chegaria em 1952, com a atribuição do Prémio Delfim de Guimarães ao livro “Sibila”, galardoado no ano seguinte com o Prémio Eça de Queiroz.
Estreou-se no teatro em 1958 com “O Inseparável”.

Foi membro do conselho directivo da Comunitá Europea degli Scrittori (Roma, 1961-1962). Entre 1986 e 1987 foi Directora do diário O Primeiro de Janeiro (Porto). Entre 1990 e 1993 assumiu a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II (Lisboa) e foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. É membro da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris), da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, tendo já sido distinguida com a Ordem de Sant'Iago da Espada (1980), a Medalha de Honra da Cidade do Porto (1988) e o grau de "Officier de l'Ordre des Arts et des Lettres", atribuído pelo governo francês (1989).

Várias obras suas foram traduzidas em diversos países e algumas foram adaptadas ao cinema por Manoel de Oliveira, como “Francisca”, “Vale Abraão” e “As Terras de Risco”. O seu romance “As Fúrias” foi adaptado ao teatro por Filipe La Féria.

Aos 81 anos, Agustina Bessa-Luís recebeu o Prémio Camões, considerado o mais importante prémio literário da língua portuguesa.

Escritaria e José Saramago em Penafiel

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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Prémio Nobel da Literatura 2009

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O Prémio Nobel da Literatura foi atribuído este ano à escritora alemã de origem romena Herta Müller, de 56 anos.

A Academia sueca sublinha que Herta Müller consegue, "com a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retratar o universo dos desapossados".

Müller é autora de livros como “O homem é um grande faisão sobre a terra”, editado em Portugal pela Cotovia, e “A terra das ameixas verdes”, publicado a nível nacional pela Difel.

Nascida a 17 de Agosto de 1953, na aldeia de Nitzkydorf, perto de Timisoara, na Roménia. Estudou alemão e literatura romena na sua terra natal e trabalhou depois como tradutora numa fábrica de Timisoara, antes de ser demitida das suas funções em 1979 por se ter recusado a colaborar com a polícia política de Nicolae Ceaucescu.

Müller acabou por abandonar o seu país em 1987 para ir para a Alemanha com o marido, o também escritor Richard Wagner. Para trás deixou uma longa luta perdida pela publicação dos seus trabalhos frontalmente críticos ao regime totalitário de Ceausescu, que acabaria por ser derrubado dois anos depois de Müller sair da Roménia.

Em 1984 foi distinguida com o Prémio Aspekte e onze anos depois recebeu o prémio europeu de literatura Aristeion e foi eleita para a Academia Alemã para Língua e Poesia. Em 1998, recebeu o prémio irlandês IMPAC, no ano seguinte o Prémio Franz Kafka. Em 2003, foi galadoarda com o prémio Joseph Breitbach de literatura alemã, em 2004 com o prémio de literatura da Fundação Konrad Adenauer e, em 2006, com o Prémio Würth de literatura europeia.

A notícia da distinção com o Prémio Nobel da Literatura 2009 apanhou desprevenida a escritora alemã. “Estou surpreendida e ainda nem acredito, de momento não posso dizer mais nada”, disse Herta Müller num comunicado divulgado pela Hanser Verlag, a editora da romancista.

Público