segunda-feira, 26 de março de 2012

Morreu António Tabucchi



Em jeito de homenagem, o artigo de João Céu e Silva, no Diário de Notícias:

A casa onde o escritor Tabucchi morava em Lisboa fica numa rua a descer para o rio Tejo e das suas varandinhas lia-se um romance inteiro apenas com o olhar. Roupas a secar ao sol que só ilumina a rua por inteiro durante muito pouco tempo; janelas de madeira desde o rés-do-chão, de onde os mais sem vergonha podiam roubar um saco de batatas ao marçano só com o esticar do braço; portas emperradas a tapar a vida aos velhos que por ali ainda moram, de onde um pontapé certeiro amolga os carros que as entaipam; passeios tão apertados que só os lingrinhas e as misses ali cabem e uma inclinação que deixava qualquer um a arfar. Era uma casa apropriada para se escrever o romance que se via dessas varandinhas, com um número qualquer pendurado na ombreira de pedra cá em baixo, algo escura ainda no primeiro andar, cuja escadaria dava logo para a sala ampla. O chão de madeira coberto com tapetes rangia um pouco e havia que ter cuidado para não se tropeçar na decoração. O escritor Tabucchi gostava de se sentar num dos sofás e falar, sempre chegado à frente, com receio que a posição colada às costas do móvel interrompesse aquele fluxo de ideias que oferecia quando estava a gostar da conversa. De uma entrevista com ele era certo poder-se fazer duas ou três e guardar ainda umas belas frases para um dia como o de ontem em que foi anunciada a sua morte. Mas não vale a pena revolver a gaveta dos blocos para encontrar a última que me deu porque ainda está muito fresca na memória. Como o escritor Tabucchi falou! Do livro em causa, das traduções, dos outros já escritos e dos ainda por escrever; de pensar em português mas não lhe ser fácil escrever nesta língua; da cultura de Portugal, de Itália e de França; da política de cá e de lá, do processo na justiça com o primeiro-ministro cantor. A rua que agora perdeu um dos seus moradores chama-se Rua do Monte Olivete, onde morava o vizinho que ao abrir a janela lia um romance inteiro na vida que passava por aquela calçada de pedra negra.
João Céu e Silva, in Diário de Notícias

sexta-feira, 23 de março de 2012

"Alma" e dia mundial da poesia












No dia da poesia, fomos ao teatro ver a excelente adaptação cénica do Auto da Alma de Gil Vicente, da responsabilidade de Nuno Carinhas – ALMA.
E no teatro não deixamos de nos cruzar com a poesia, a poesia de Teixeira de Pascoaes, em Deslumbramento e Minha aldeia na Páscoa
Caminhamos com a Alma e assistimos ao milagre, de mundo em mundo, repetido…

Partilho convosco um olhar poético de um amigo que acredita que, enquanto fazemos poesia, caminhamos e não nos rendemos à morte antecipada:  

é muito tarde e dói-me a alma
o dia trouxe-me uma coroa que não queria, de espinhos –
mas esta alma é forte como os ventos, dura como os diamantes
esta alma não se rende, não se rende nunca
esta alma que é minha, misturada com o sol e com a lua
é como um barco feito de artérias e sangue;
correndo, correndo sempre na linha direta do horizonte
qual funâmbulo
sem medo da queda nem de afogamento
lá longe
onde se junta mar e firmamento –

esta alma não é pura não é branca nem é suja
é uma alma que acredita
e por mais que doa a alma, há sempre caminho
os pés cansados, os dedos moídos e a corrida
e por mais que doa a alma, revela que existe
que é humana e que há vida –


José Ferreira, março 2012

Enviado por Auxília Ramos