segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente
O Fidalgo
“O facto é que, embora relativamente raros, os fidalgos aparecem também duramente atacados nos autos. No Auto da Barca do Inferno caracteriza-se por uma presunção balofa e por explorarem o trabalho dos servidores sem lhes pagar.”
LOPES, Óscar e SARAIVA, António José, História da Literatura Portuguesa



O “poderoso dom Anrique” é a primeira personagem a comparecer no cais. Desde o início, revela superioridade e arrogância (“Esta barca onde vai ora, / que assi está apercebida?”). Por isso, é recebido pelo Diabo com cerimónia e ironia (o recurso à forma de tratamento “vós” por parte do Arrais do Inferno comprova-o), o que evidencia um falso tratamento cortês inicial que se irá, depois, desvanecer (“Senhor, a vosso serviço”, "Ó poderoso dom Anrique / cá vindes vós?”).
Porém, quando se apercebe que embarcará na Barca do Inferno, procura uma alternativa, a Barca do Paraíso, dirigindo-se a outro Arrais, o Anjo, confiado no seu título de “fidalgo de solar”. Nada corre, todavia, como ele esperava. Primeiramente, nem sequer é capaz de invocar o Anjo com sucesso; sendo mesmo mencionados os seus sussurros amuados, em aparte, quando não lhe respondem (“Par Deos, aviado estou! / Cant’a isto é já pior… / Que jiricocins, salvanor! / Cuidam que são eu grou?”).
O Anjo, aqui representado como uma criatura justa, altiva e superiormente segura, responder-lhe-á com desdém e reprovação. A censura angelical reprova a tirania cortês, exercida por este fidalgo, e que é cenicamente representada pelo pajem que acompanha dom Anrique (“Não se embarca tirania / neste batel divinal”; “desprezastes os pequenos”). Aliás, a sua cadeira simboliza a convicção na salvação com base numa falsa vivência da religião. Também o rabo surge como elemento cénico que traduz o seu estatuto social e hierárquico.
Face à recusa do Anjo, regressa ao batel infernal, onde é esperado euforicamente pelo Diabo. Nesta terceira parte, o seu comportamento muda radicalmente, apresentando-se agora resignado e conformado (“Ao Inferno todavia”). Além disso, verificamos igualmente um porte triste e o arrependimento doloroso (“folgava em ser adorado; / confiei em meu estado / e não vi que me perdia). Somente após as palavras sarcásticas do Diabo sobre a condição da mulher quinhentista, se consciencializa da inevitabilidade do seu destino.
D. Anrique é uma personagem-tipo, representativa de todos os nobres e cortesãos que mantinham uma conduta religiosa falsa e uma postura ética condenável, evidenciando uma arrogância resultante do estrato social a que pertenciam e que lhes garantiam todos os direitos e prerrogativas.
Em suma, o Fidalgo simboliza toda uma nobreza decadente, em crise profunda de valores (denunciada na cena pela conduta adúltera do próprio Fidalgo e pela sua condenação genética – o pai também já cometera os mesmos pecados). Mais uma vez, Mestre Gil faz valer o seu lema: ridendo castigat mores...

Ana Isabel Costa

1 comentário:

Anónimo disse...

O blog esta interessante e decidamente organizado! Continue!!!!

PS - Desculpe não a ter cumprimentado
na cerimónia de Entrega de Menções de Mérito mas devido a motivos profissionais o meu pai teve que se ausentar e com ele viemos nos também!

ASSINADO : José Filipe Fonseca
(Da sua direcção de turma)