segunda-feira, 14 de junho de 2010

"La casa de la Troia - librería"

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Um texto sobre o prazer dos livros, de João Boavida, publicado no blogue De rerum natura, de que sou leitora assídua.
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Há livros que são como cometas: passam nas nossas vidas com grande brilho, causam profunda emoção e deixam caudas luminosas para o resto dos nossos dias. Por isso as grandes obras se devem ler e reler. Mas, como a vida é curta, nunca chegamos a ler tudo o que queríamos, menos ainda a reler tudo o que desejávamos. Às vezes, chegado ao fim de um livro empolgante, releio-o logo de seguida. Fiz isso, por exemplo, com O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, A obra ao negro, de Marguerite Yourcenar e outros. Mas o mais frequente é voltar de vez em quando e ler algumas passagens, saboreando a felicidade na beleza reencontrada: a Via sinuosa, de Aquilino, A sibila, de Agustina, Tchekov, por onde quer que se lhe pegue, o Lawrence Durrell, do Quarteto de Alexandria, os clássicos russos quase todos e tantos, tantos mais.
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Livros haverá, que foram encanto de juventude, e que talvez seja melhor não voltar a ler, para não sofrer desilusão. Suponho que está nesta categoria - mas não quero ser injusto – uma obra que me encantou na juventude, que emprestei a amigos e colegas, em várias saídas, até regressar, por fim, em lastimável estado, e donde a tive de recuperar a engenhos de amor e goma-arábica.
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Era um livro de Peréz Lugín, editado pela Portugália, na colecção Romances Sensacionais, com uma capa aos anos cinquenta, mas sem referência ao desenhador nem à data de impressão. Era A casa da Rua de Tróia, adaptado, anos antes, em folhetim radiofónico pela Emissora Nacional.
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Passava-se na Galiza, no ambiente estudantil de Santiago de Compostela, nos finais do século XIX. Penso que não é grande literatura, mas o amor pelas Rías Bajas, a pluviosidade de Santiago, a morrinha galega, os amores doces entre Carmen de Castro Retén e Gerardo Roquer y Paz, o ambiente estudantil, fizeram-me lê-lo e relê-lo, detrás para a frente e da frente para trás. Ainda por cima fora traduzido por um Boavida-Portugal, que pensei logo ser ainda meu parente.
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Encontrei este nome em algumas crónicas, suponho que no Diário Ilustrado (alguns se lembrarão ainda, em papel cor-de-rosa, e que era distribuído por todo o país em carochas vermelhos e amarelos, numa dinâmica nada conforme a esses tempos portugueses), mas nunca cheguei a confirmar a parentela.
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Foi um livro de encanto, para mim, mas não tenho coragem de o reler, pelas razões apontadas.

Há anos, estando eu em Madrid, num hotel próximo da Gran Via, descobri, ali perto, a Calle de los libreros. Uma rua pequena, escura, com muitas livrarias à antiga, estantes em madeira, escaparates envidraçados, livros encavalitados até ao tecto, com patine nos armários e neblina pelos recantos. Daquelas que já vão rareando, mas onde ainda se encontram preciosidades que a comercialização dos sucessos a metro e da literatura às toneladas, dos centros comerciais, vão fazendo desaparecer. Percorri várias delas como quem anda por um mundo perdido e maravilhoso até que, de repente, ao sair duma, dou de caras, no outro lado da rua, a toda a largura da fachada e a toda amplitude do meu ânimo, com La casa de la Troia - librería. Como era possível? O nome dela era o título original da minha encantada A Casa da rua de Rua de Tróia, que tanto me fizera sonhar na passagem da adolescência para a juventude. Imaginem a minha emoção: foi como se, no estrangeiro, encontrasse, ali, na rua, um amigo perdido desde o tempo de escola.
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Não é, pois, em vão, que se diz que os livros são nossos amigos - fieis e pacientes. Consultando a Internet vejo, agora, que há toda uma romagem de afectos instituídos, em Santiago e noutros lugares, a partir deste livro e deste título. Não o sabia, mas esta comunhão de amores e sentimentos é uma forma prática de fazer teoria da literatura, e, já agora, uma razão para teorizar sobre a literatura.
João Boavida

2 comentários:

André disse...

vou gostar de ler o post, antes mesmo, gostaria de celebrar o facto de áreas aparentemente tão distintas como a biologia ou geologia e o português partilharem mais do que se vê com um olhar desatento: visito regularmente (menos do que gostaria...) o blog de rerum natura, para me actualizar, para tirar ideias para fichas ou testes de BG ou apenas para partilhar algumas reflexões com os meus alunos. regularmente, sou surpreendido com textos de outras 'áreas', e não consigo resistir a ler (o que poderá explicar a frequência reduzida com que faço visitas! sobra tão pouco tempo, para preencher, depois do trabalho e tanto afazer!...). obrigado eunice, muitos parabéns pelo teu trabalho, particularmente aqui no Blog!

Anónimo disse...

Também sou um leitor assíduo do De Rerum Natura. André, eu acho que o conhecimento do mundo é só um; nós é que por vezes nos enfiamos em conchas e receamos «ver dentro das coisas», ver de um «ver claramente visto». A atitude questionadora, se existe, une-nos, porém. Quem estuda letras (o carácter na página ou o carácter no monitor e, depois, tudo o que acontece na nossa cabeça, ao qual chamamos significado …), estuda muito mais do que isso: estuda o universo inteiro («to see a world in a grain of sand»), estuda tudo – e se não for assim, então, não estuda nada de jeito. Parece-me que nas outras ciências também é assim – o espírito crítico e questionador que permite a absorção dos saberes pode acontecer de qualquer ponto da imensa geografia do saber («dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo» - espectacular descontextualização de Arquimedes, ãh?!). Nós, por vezes com uma auto-condescendêcia que chega a ser confrangerdora, é que temos medo de arriscar espreitar para fora da concha. Sei que concordas comigo, pois colocaste "áreas" entre aspas; as fronteiras são realmente arbitrárias, nada mais que possíveis limites criados pelo ser humano.

Hélder