Dois trabalhos de (re)criação da leitura: primeiro é um mini-romance em forma de diário a partir da leitura de Os Filhos da Rua Arbat. O outro é um artigo de apreciação crítica sobre Comissão das Lágrimas, de António Lobo Antunes.
1.
..
Este romance decorre numa altura em que vigora o Comunismo na URSS, liderado por Iossif Vissarionovitch Djougatchvili, mais conhecido por Estaline. Uma época de repressão intensa, onde quem pretende viver é obrigado a acreditar nos ideais do Partido e que “Estaline tem sempre razão”. Ninguém duvida do poderio deles e tem de obedecer-lhes cegamente. De facto, até tenho conhecimento de jovens que denunciaram os pais por estes criticarem a política dos kolkhozes. São casos extremos, claro, mas o Partido está à frente de tudo e ninguém ousa apontar-lhe o dedo. Em breve, a URSS será uma potência, uma das maiores do Mundo, e poderemos combater contra os monstros capitalistas.
IRMÃOS PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!
O meu nome é Vladimir Franciscovsky e sou Comunista.
I
Mais um calmo dia na Arbat. Escola, Konsomol[1], casa. Minha mãe, Nenka, pediu-me para ir recolher os bens destinados para a semana que começa. Chegaram os cartões de racionamento. Em breve serão abolidos, dizem. Será um ligeiro retorno à diferenciação social? Não percebo por que colocam a hipótese de extinção dos cartões, quando se pretende a união das classes. Como também não percebo que solução arranjarão quando o inverno atingir o Cazaquistão donde chegam os cereais. Para já, não temo estas hipóteses. O camarada Estaline tem dois dedos de testa e sabe que mais vale prevenir que remediar. Não, não temo! Ele é o Grande Pai e só quer o nosso bem.
“Ora, cinco quilos de carne, pão, ovos, um kulitch, samovar, vodca e salame...mais alguma coisa, Chicovsky[2]?”, pergunta Arshavin, o merceeiro.
“É tudo”, afirmei.
Regresso a casa e ajudo minha mãe a arrumar aquilo a que temos direito. Teremos que esconder a vodca, pois, meu pai, Malafeev, transforma-se numa violentíssima pessoa apenas com uma pequena dose.
II
Há três dias, Estaline fez uma visita à minha escola. Sacha Pankratov, meu colega de carteira, deu-lhe as boas vindas em nome de todos e iniciou a conferência. Estaline começou o discurso. Demonstrou-nos as metas do segundo Plano Qinquenal, que consistia no desenvolvimento do setor da indústria ligeira e dos bens de consumo. As coisas parecem estar a mudar. Fico feliz que assim o seja.
No fim da conferência, “propõe-se uma moção de fidelidade ao camarada Estaline”. Deste modo, todos os alunos e professores se levantam e batem palmas, aplaudindo o nosso grande camarada. Durante cinco minutos, persistem os aplausos. Os braços e as mãos começam já a dar desconforto. Mas parará alguém? Pouco provável, muitos são os funcionários do NKVD que nos observam para descobrir quem cede. E, assim, os aplausos sucedem-se durante largos, largos minutos... Pouco antes de chegar ao quarto de hora, o diretor da escola, indivíduo já com os seus sessenta anos, senta-se com um ar exausto.
Desde esse dia, o diretor ainda não foi visto. Fiquei a saber que foi condenado por dez anos, para a Sibéria... motivos que “não interessam à ordem pública”. Enfim, era um senhor simpático. Mas, se o Partido o prendeu, foi porque ele ofendeu em algum aspeto o Povo[3].
III
Sacha e eu fomos chamados à direção do Konsomol. Em princípio, seria uma visita de rotina, visto que, sendo nós membros do comité central, é usual distribuírem-nos tarefas e objetivos. Contudo, esse não era o assunto que nos esperava.
“Sentem-se”, ordenou o velho Dimitri, presidente do Konsomol. “Vou direto ao assunto. As vossas atitudes deixaram-nos boquiabertos. Membros natos do Partido, Comunistas de verdade, ninguém esperava isto da vossa parte”, o seu olhar azul e aguçado tornava-se cada vez mais penetrante como se nos lesse os pensamentos.
“Não sabemos do que falas, Camarada Dimitri”, afirmou Sacha surpreso. Dimitri pareceu ignorá-lo.
“As vossas atitudes causaram divergências dentro do Partido e, para inimigos, bastam-nos os capitalistas!”, rugiu o velho de lá de cima dos seus dois metros.
Farto de procurar respostas no meu pensamento, comecei a sentir-me injustiçado.
“Camarada, já advertimos que não estamos a entender o motivo de tanto alarido. Por favor, informa-nos de forma a melhorarmos as nossas ações e a não voltarmos a prejudicar o Partido, se é que o fizemos”.
“Tivessem pensado nisso antes. De boas intenções está o inferno cheio. Agora saiam. Desiludiram-me a mim, que sempre confiei em vocês, ao camarada Estaline, a todo o Konsomol, enfim, ao povo russo que tanta confiança tem na nossa instituição. E façam o favor de deixar aqui, na minha secretária, os vossos crachás do Partido.” Dimitri ficou a olhar distante para a praça Plotnikov, enquanto nós abandonámos o escritório, estupefactos.
Nessa mesma noite, tocaram à porta de minha casa. Minha mãe foi abrir e dois sujeitos altos e robustos penetraram diretamente no meu quarto, de tal maneira que parecia que já lá tinham estado antes, pelo modo como o descobriram no meio de cinco portas.
“NKVD”, afirmou um deles, “não nos tente fazer frente. Estamos aqui em nome do Partido. Pegue numa toalha, numa muda de roupa e em alguns objetos pessoais. Está proibido de se fazer acompanhar de objetos cortantes como lâminas de barba e tesouras. Não nos desobedeça. Pode nunca mais ver a Arbat.”
“Descanse, minha mãe, não se passa nada...”, tentei acalmá-la e penso que a mim mesmo...
IV
“Jantar!”
20:00h. Já me habituei aos rituais da prisão. A comida não é grande coisa e passo bastante frio. Desta vez, são ovos cozidos, pão e um copo de água. Mas, mesmo assim, não é mau de todo. Pelo menos tenho livros, de dois em dois dias há uma distribuição deles. Dostoievski e Tolstoi são, do meu ponto de vista, dos melhores escritores de toda a Rússia.
Soube, por minha mãe, que Pankratov teve o mesmo destino que eu. Enfim, ainda não percebo que mal provocámos ao Partido. Mas, se ele afirma isso, então é legítimo privar-nos a liberdade. O Partido tudo sabe, tudo controla. Nós somos simples peças, não sabemos nada. E, por isso, temos que ser guiados pela sua mão paternal.
V
Às quatro horas dessa noite, fui acordado e obrigado a vestir.
“Alenitchev espera-te, Franciscovsky”.
Alenitchev era considerado um mito por toda a URSS. Apenas visto em fotografias do jornal O Comunista, todos o temiam pela sua fama dentro do Partido. Acusavam-no de arrancar a confissão a pessoas que nem coragem tinham para matar uma mosca.
“Seja o que Deus quiser”, pensei, “estou de consciência tranquila”.
Fui ultrapassando corredores sujos e escuros e penso que subi dois andares. A porta estava aberta e, lá dentro, um olhar de rottweiler esperava-me. Era realmente medonho.
“Porque o fizeste?”, rugiu quase sem me dar tempo de fechar a porta.
“Não sei do que me acusam”, afirmei num sussurro.
“Como podes ter tal descaramento, camarada?! O Partido confiou em ti e traíste-o. E, ainda por cima, juraste defendê-lo em qualquer situação”
“E defendi sempre! Confio no Partido tanto como tu ou como o Camarada Estaline ou...”
“Chega! Não ouses mais falar em vão do nosso Grande Pai. Trabalhamos todos os dias para criar a real situação de igualdade, aquela que vai beneficiar todos e não uma pequena minoria. Tem-te faltado alguma coisa? Comida, cama, roupa lavada? Vives numa área quase de prestígio. Que mais queres tu? Queres trabalho, nós arranjamos; queres ir visitar a tua família a Leningrado, nós ajudamos nas tarifas; queres a tua mãe de saúde, nós comparticipamos nas despesas. Em que é que o Partido te faltou para jurares ser um fiel apoiante e agora o traíres?! Queremos apenas que pagues pelo teu erro, não te faremos mal. Esperemos que tenha sido um devaneio. Levem-no”
No dia seguinte, pressenti qual poderia ser a razão da perseguição. Os cartazes do Konsomol, sim! Como não suspeitei! Eu e Sacha trabalhámos na realização de uns cartazes em conjunto com outros jovens, entre os quais Krivorutchko, do qual se suspeitava não ter grande confiança nos ideais Comunistas. Realmente, aqueles textos eram um pouco ambíguos...
“Preciso de falar com Alenitchev”, disse ao guarda do corredor.
“Impossível”, disse secamente.
“Mas tenho forma de provar a minha inocência!”
“Achas que alguém vai acreditar em ti?! Traíste o Partido, não podes dar a volta a isso. Ignorarão as tuas supostas desculpas”
Aquele Krivorutchko...terá o seu pagamento!
VI
Nunca a minha vida tinha mudado tanto em dez segundos. Com a maior da naturalidade, fui, uma vez mais, acusado de atentado à construção da sociedade socialista e deportado para a Sibéria. Três anos. Três anos sem ver minha querida mãe, a Arbat, os meus amigos Lenka, Nina, Sacha, Varia, Iura, Max, Serafim Katia, Vadim, enfim, tudo o que fez de mim o que sou. Três anos... Três anos após os quais, muito provavelmente, não terei visto para regressar a Moscovo e ficarei excomungado de uma sociedade pela qual dei tudo...
Nota do Autor
Neste pequeno romance, por mim idealizado como recriação da história de Sacha Pankratov, apenas o nome do protagonista, de Krivorutchko e dos amigos são iguais aos da obra. Todos os outros são fictícios. Jovem que vivia na Arbat, Sacha desde novo difundiu os ideais do Partido como um comunista de verdade e até possuía um alto cargo no Konsomol. Contudo, vicissitudes dentro do instituto ditaram a sua sentença. Tal como Franciscovsky, foi preso e julgado por um ato do qual não tinha a noção estar a exercer contra o Partido. Assim, é preso e deportado sem justa causa e não volta a ver a sua querida mãe, a Arbat e os seus grandes amigos.
Esta obra é, indubitavelmente, fenomenal e extremamente bem conseguida por Anatoli Ribakov, pois mostra-nos o terror vivido durante o Estalinismo, através de um alargado número de personagens, muitas delas reais, incluindo o próprio Estaline. O autor, na primeira pessoa do chefe, mostrou a dureza da sua personalidade, os seus pensamentos acerca de elementos do Partido e, inclusive, aspetos da vida privada, como uma ida ao dentista. Ribakov apresenta-nos, assim, o panorama da sociedade soviética repressiva dos anos 30. Muitas das histórias são verídicas, incluindo o assassinato de Kirov, membro do Partido e considerado como um opositor a Estaline (como demonstram vários pensamentos do ditador).
Em suma, “combinando a técnica do romance policial com uma fascinante análise da psicologia do poder de Estaline (e do próprio), o autor traça um extraordinário retrato da primeira geração que cresceu sob o regime comunista. E escreve a obra definitiva sobre o processo que levou um dirigente a aterrorizar toda uma nação”[4].
[1] Abreviatura de Komunistitcheski Soyuz Molodioji - União da Juventude Comunista.[2] Nome carinhoso de Franciscovsky.[3] Com base no excerto de Alenxandre Soljenitsyne, na obra Arquipélago do Gulag.[4] RIBAKOV, Anatoli, “Os Filhos da Rua Arbat”, Círculo dos Leitores, Sinopse
Este romance decorre numa altura em que vigora o Comunismo na URSS, liderado por Iossif Vissarionovitch Djougatchvili, mais conhecido por Estaline. Uma época de repressão intensa, onde quem pretende viver é obrigado a acreditar nos ideais do Partido e que “Estaline tem sempre razão”. Ninguém duvida do poderio deles e tem de obedecer-lhes cegamente. De facto, até tenho conhecimento de jovens que denunciaram os pais por estes criticarem a política dos kolkhozes. São casos extremos, claro, mas o Partido está à frente de tudo e ninguém ousa apontar-lhe o dedo. Em breve, a URSS será uma potência, uma das maiores do Mundo, e poderemos combater contra os monstros capitalistas.
IRMÃOS PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!
O meu nome é Vladimir Franciscovsky e sou Comunista.
I
Mais um calmo dia na Arbat. Escola, Konsomol[1], casa. Minha mãe, Nenka, pediu-me para ir recolher os bens destinados para a semana que começa. Chegaram os cartões de racionamento. Em breve serão abolidos, dizem. Será um ligeiro retorno à diferenciação social? Não percebo por que colocam a hipótese de extinção dos cartões, quando se pretende a união das classes. Como também não percebo que solução arranjarão quando o inverno atingir o Cazaquistão donde chegam os cereais. Para já, não temo estas hipóteses. O camarada Estaline tem dois dedos de testa e sabe que mais vale prevenir que remediar. Não, não temo! Ele é o Grande Pai e só quer o nosso bem.
“Ora, cinco quilos de carne, pão, ovos, um kulitch, samovar, vodca e salame...mais alguma coisa, Chicovsky[2]?”, pergunta Arshavin, o merceeiro.
“É tudo”, afirmei.
Regresso a casa e ajudo minha mãe a arrumar aquilo a que temos direito. Teremos que esconder a vodca, pois, meu pai, Malafeev, transforma-se numa violentíssima pessoa apenas com uma pequena dose.
II
Há três dias, Estaline fez uma visita à minha escola. Sacha Pankratov, meu colega de carteira, deu-lhe as boas vindas em nome de todos e iniciou a conferência. Estaline começou o discurso. Demonstrou-nos as metas do segundo Plano Qinquenal, que consistia no desenvolvimento do setor da indústria ligeira e dos bens de consumo. As coisas parecem estar a mudar. Fico feliz que assim o seja.
No fim da conferência, “propõe-se uma moção de fidelidade ao camarada Estaline”. Deste modo, todos os alunos e professores se levantam e batem palmas, aplaudindo o nosso grande camarada. Durante cinco minutos, persistem os aplausos. Os braços e as mãos começam já a dar desconforto. Mas parará alguém? Pouco provável, muitos são os funcionários do NKVD que nos observam para descobrir quem cede. E, assim, os aplausos sucedem-se durante largos, largos minutos... Pouco antes de chegar ao quarto de hora, o diretor da escola, indivíduo já com os seus sessenta anos, senta-se com um ar exausto.
Desde esse dia, o diretor ainda não foi visto. Fiquei a saber que foi condenado por dez anos, para a Sibéria... motivos que “não interessam à ordem pública”. Enfim, era um senhor simpático. Mas, se o Partido o prendeu, foi porque ele ofendeu em algum aspeto o Povo[3].
III
Sacha e eu fomos chamados à direção do Konsomol. Em princípio, seria uma visita de rotina, visto que, sendo nós membros do comité central, é usual distribuírem-nos tarefas e objetivos. Contudo, esse não era o assunto que nos esperava.
“Sentem-se”, ordenou o velho Dimitri, presidente do Konsomol. “Vou direto ao assunto. As vossas atitudes deixaram-nos boquiabertos. Membros natos do Partido, Comunistas de verdade, ninguém esperava isto da vossa parte”, o seu olhar azul e aguçado tornava-se cada vez mais penetrante como se nos lesse os pensamentos.
“Não sabemos do que falas, Camarada Dimitri”, afirmou Sacha surpreso. Dimitri pareceu ignorá-lo.
“As vossas atitudes causaram divergências dentro do Partido e, para inimigos, bastam-nos os capitalistas!”, rugiu o velho de lá de cima dos seus dois metros.
Farto de procurar respostas no meu pensamento, comecei a sentir-me injustiçado.
“Camarada, já advertimos que não estamos a entender o motivo de tanto alarido. Por favor, informa-nos de forma a melhorarmos as nossas ações e a não voltarmos a prejudicar o Partido, se é que o fizemos”.
“Tivessem pensado nisso antes. De boas intenções está o inferno cheio. Agora saiam. Desiludiram-me a mim, que sempre confiei em vocês, ao camarada Estaline, a todo o Konsomol, enfim, ao povo russo que tanta confiança tem na nossa instituição. E façam o favor de deixar aqui, na minha secretária, os vossos crachás do Partido.” Dimitri ficou a olhar distante para a praça Plotnikov, enquanto nós abandonámos o escritório, estupefactos.
Nessa mesma noite, tocaram à porta de minha casa. Minha mãe foi abrir e dois sujeitos altos e robustos penetraram diretamente no meu quarto, de tal maneira que parecia que já lá tinham estado antes, pelo modo como o descobriram no meio de cinco portas.
“NKVD”, afirmou um deles, “não nos tente fazer frente. Estamos aqui em nome do Partido. Pegue numa toalha, numa muda de roupa e em alguns objetos pessoais. Está proibido de se fazer acompanhar de objetos cortantes como lâminas de barba e tesouras. Não nos desobedeça. Pode nunca mais ver a Arbat.”
“Descanse, minha mãe, não se passa nada...”, tentei acalmá-la e penso que a mim mesmo...
IV
“Jantar!”
20:00h. Já me habituei aos rituais da prisão. A comida não é grande coisa e passo bastante frio. Desta vez, são ovos cozidos, pão e um copo de água. Mas, mesmo assim, não é mau de todo. Pelo menos tenho livros, de dois em dois dias há uma distribuição deles. Dostoievski e Tolstoi são, do meu ponto de vista, dos melhores escritores de toda a Rússia.
Soube, por minha mãe, que Pankratov teve o mesmo destino que eu. Enfim, ainda não percebo que mal provocámos ao Partido. Mas, se ele afirma isso, então é legítimo privar-nos a liberdade. O Partido tudo sabe, tudo controla. Nós somos simples peças, não sabemos nada. E, por isso, temos que ser guiados pela sua mão paternal.
V
Às quatro horas dessa noite, fui acordado e obrigado a vestir.
“Alenitchev espera-te, Franciscovsky”.
Alenitchev era considerado um mito por toda a URSS. Apenas visto em fotografias do jornal O Comunista, todos o temiam pela sua fama dentro do Partido. Acusavam-no de arrancar a confissão a pessoas que nem coragem tinham para matar uma mosca.
“Seja o que Deus quiser”, pensei, “estou de consciência tranquila”.
Fui ultrapassando corredores sujos e escuros e penso que subi dois andares. A porta estava aberta e, lá dentro, um olhar de rottweiler esperava-me. Era realmente medonho.
“Porque o fizeste?”, rugiu quase sem me dar tempo de fechar a porta.
“Não sei do que me acusam”, afirmei num sussurro.
“Como podes ter tal descaramento, camarada?! O Partido confiou em ti e traíste-o. E, ainda por cima, juraste defendê-lo em qualquer situação”
“E defendi sempre! Confio no Partido tanto como tu ou como o Camarada Estaline ou...”
“Chega! Não ouses mais falar em vão do nosso Grande Pai. Trabalhamos todos os dias para criar a real situação de igualdade, aquela que vai beneficiar todos e não uma pequena minoria. Tem-te faltado alguma coisa? Comida, cama, roupa lavada? Vives numa área quase de prestígio. Que mais queres tu? Queres trabalho, nós arranjamos; queres ir visitar a tua família a Leningrado, nós ajudamos nas tarifas; queres a tua mãe de saúde, nós comparticipamos nas despesas. Em que é que o Partido te faltou para jurares ser um fiel apoiante e agora o traíres?! Queremos apenas que pagues pelo teu erro, não te faremos mal. Esperemos que tenha sido um devaneio. Levem-no”
No dia seguinte, pressenti qual poderia ser a razão da perseguição. Os cartazes do Konsomol, sim! Como não suspeitei! Eu e Sacha trabalhámos na realização de uns cartazes em conjunto com outros jovens, entre os quais Krivorutchko, do qual se suspeitava não ter grande confiança nos ideais Comunistas. Realmente, aqueles textos eram um pouco ambíguos...
“Preciso de falar com Alenitchev”, disse ao guarda do corredor.
“Impossível”, disse secamente.
“Mas tenho forma de provar a minha inocência!”
“Achas que alguém vai acreditar em ti?! Traíste o Partido, não podes dar a volta a isso. Ignorarão as tuas supostas desculpas”
Aquele Krivorutchko...terá o seu pagamento!
VI
Nunca a minha vida tinha mudado tanto em dez segundos. Com a maior da naturalidade, fui, uma vez mais, acusado de atentado à construção da sociedade socialista e deportado para a Sibéria. Três anos. Três anos sem ver minha querida mãe, a Arbat, os meus amigos Lenka, Nina, Sacha, Varia, Iura, Max, Serafim Katia, Vadim, enfim, tudo o que fez de mim o que sou. Três anos... Três anos após os quais, muito provavelmente, não terei visto para regressar a Moscovo e ficarei excomungado de uma sociedade pela qual dei tudo...
Nota do Autor
Neste pequeno romance, por mim idealizado como recriação da história de Sacha Pankratov, apenas o nome do protagonista, de Krivorutchko e dos amigos são iguais aos da obra. Todos os outros são fictícios. Jovem que vivia na Arbat, Sacha desde novo difundiu os ideais do Partido como um comunista de verdade e até possuía um alto cargo no Konsomol. Contudo, vicissitudes dentro do instituto ditaram a sua sentença. Tal como Franciscovsky, foi preso e julgado por um ato do qual não tinha a noção estar a exercer contra o Partido. Assim, é preso e deportado sem justa causa e não volta a ver a sua querida mãe, a Arbat e os seus grandes amigos.
Esta obra é, indubitavelmente, fenomenal e extremamente bem conseguida por Anatoli Ribakov, pois mostra-nos o terror vivido durante o Estalinismo, através de um alargado número de personagens, muitas delas reais, incluindo o próprio Estaline. O autor, na primeira pessoa do chefe, mostrou a dureza da sua personalidade, os seus pensamentos acerca de elementos do Partido e, inclusive, aspetos da vida privada, como uma ida ao dentista. Ribakov apresenta-nos, assim, o panorama da sociedade soviética repressiva dos anos 30. Muitas das histórias são verídicas, incluindo o assassinato de Kirov, membro do Partido e considerado como um opositor a Estaline (como demonstram vários pensamentos do ditador).
Em suma, “combinando a técnica do romance policial com uma fascinante análise da psicologia do poder de Estaline (e do próprio), o autor traça um extraordinário retrato da primeira geração que cresceu sob o regime comunista. E escreve a obra definitiva sobre o processo que levou um dirigente a aterrorizar toda uma nação”[4].
[1] Abreviatura de Komunistitcheski Soyuz Molodioji - União da Juventude Comunista.[2] Nome carinhoso de Franciscovsky.[3] Com base no excerto de Alenxandre Soljenitsyne, na obra Arquipélago do Gulag.[4] RIBAKOV, Anatoli, “Os Filhos da Rua Arbat”, Círculo dos Leitores, Sinopse
Francisco Melo
2.
...
As guerras mais difíceis de vencer são as que travamos com nós mesmos, quando nos começamos a perder e já não há quem possa restaurar aquilo que um dia fomos.
Comissão das lágrimas são memórias do período pós guerra colonial, de uma perspetiva mais pessoal, e que encontra as verdadeiras perdas de cada um. Cristina batalha com uma vida de loucura que a arrastou para uma clínica psiquiátrica. Tem memórias vagas daquilo que a sua família passou em África. “Família” não no sentido de amor e compaixão, mas, sim, no sentido abruto, numa ligação entre pessoas que somente passa pela genética e de um homem preto a quem chama pai, mas que na verdade não o é. Esse preto que “não [tem] país, não [tem] um sítio, não [tem] um coração, [tem] um tambor que não para.”
Mais importante do que as personagens disfuncionais que aqui encontramos, será talvez a escrita poética da obra. Lobo Antunes fala-nos através de vários narradores, que gritam desespero. Palavras frias que retratam a infelicidade, e, como se não fosse possível escrever de uma forma que mais se assemelhasse à dor humana, ainda nos deparamos com dilacerações textuais. Vive-se uma paranoia, reavivam-se memórias que se repetem constantemente, para demonstrarem o quão confusas são as mentes daqueles que vivem na imaginação do autor. São “flashes” que exigem ser rapidamente registados; é uma voz que guia o leitor ao longo de todo o livro. Mas fica muito por dizer. Apenas percebemos que Simone ou Alice é uma mãe que se debate com a patologia da filha, que sofreu de abusos, que dormia na mesma cama de um marido por quem sentia um nojo incomensurável. Aquilo que sabemos é que não há regresso de certos locais da mente, e que aqueles que perfazem o livro encontram-se já num lugar distante.
Andamos a juntar as peças de várias vidas que nunca tiveram um sentido, somos nós que percorremos o labirinto, só para chegar à conclusão de que estão destinadas a ser o que sempre foram. Pedaços, restos.
Simone é atormentada por dores no joelho. Perseguem-na em todo o livro e essa dor constante vem apenas enfatizar que a personagem é escrava das suas acutilantes memórias que parecem penetrar-lhe o joelho com agulhas. E, afinal, são simplesmente dores de alma.
Lobo Antunes não quis que o livro fosse uma estória. E não o é, por um único momento.
Diana Falcão
Enviado por Hélder Moreira
Comissão das lágrimas são memórias do período pós guerra colonial, de uma perspetiva mais pessoal, e que encontra as verdadeiras perdas de cada um. Cristina batalha com uma vida de loucura que a arrastou para uma clínica psiquiátrica. Tem memórias vagas daquilo que a sua família passou em África. “Família” não no sentido de amor e compaixão, mas, sim, no sentido abruto, numa ligação entre pessoas que somente passa pela genética e de um homem preto a quem chama pai, mas que na verdade não o é. Esse preto que “não [tem] país, não [tem] um sítio, não [tem] um coração, [tem] um tambor que não para.”
Mais importante do que as personagens disfuncionais que aqui encontramos, será talvez a escrita poética da obra. Lobo Antunes fala-nos através de vários narradores, que gritam desespero. Palavras frias que retratam a infelicidade, e, como se não fosse possível escrever de uma forma que mais se assemelhasse à dor humana, ainda nos deparamos com dilacerações textuais. Vive-se uma paranoia, reavivam-se memórias que se repetem constantemente, para demonstrarem o quão confusas são as mentes daqueles que vivem na imaginação do autor. São “flashes” que exigem ser rapidamente registados; é uma voz que guia o leitor ao longo de todo o livro. Mas fica muito por dizer. Apenas percebemos que Simone ou Alice é uma mãe que se debate com a patologia da filha, que sofreu de abusos, que dormia na mesma cama de um marido por quem sentia um nojo incomensurável. Aquilo que sabemos é que não há regresso de certos locais da mente, e que aqueles que perfazem o livro encontram-se já num lugar distante.
Andamos a juntar as peças de várias vidas que nunca tiveram um sentido, somos nós que percorremos o labirinto, só para chegar à conclusão de que estão destinadas a ser o que sempre foram. Pedaços, restos.
Simone é atormentada por dores no joelho. Perseguem-na em todo o livro e essa dor constante vem apenas enfatizar que a personagem é escrava das suas acutilantes memórias que parecem penetrar-lhe o joelho com agulhas. E, afinal, são simplesmente dores de alma.
Lobo Antunes não quis que o livro fosse uma estória. E não o é, por um único momento.
Diana Falcão
Enviado por Hélder Moreira
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