Em jeito de homenagem, o artigo de João Céu e Silva, no Diário de Notícias:
A casa onde o escritor Tabucchi morava em Lisboa fica numa rua a descer para
o rio Tejo e das suas varandinhas lia-se um romance inteiro apenas com o olhar.
Roupas a secar ao sol que só ilumina a rua por inteiro durante muito pouco
tempo; janelas de madeira desde o rés-do-chão, de onde os mais sem vergonha
podiam roubar um saco de batatas ao marçano só com o esticar do braço; portas
emperradas a tapar a vida aos velhos que por ali ainda moram, de onde um pontapé
certeiro amolga os carros que as entaipam; passeios tão apertados que só os
lingrinhas e as misses ali cabem e uma inclinação que deixava qualquer um a
arfar. Era uma casa apropriada para se escrever o romance que se via dessas
varandinhas, com um número qualquer pendurado na ombreira de pedra cá em baixo,
algo escura ainda no primeiro andar, cuja escadaria dava logo para a sala ampla.
O chão de madeira coberto com tapetes rangia um pouco e havia que ter cuidado
para não se tropeçar na decoração. O escritor Tabucchi gostava de se sentar num
dos sofás e falar, sempre chegado à frente, com receio que a posição colada às
costas do móvel interrompesse aquele fluxo de ideias que oferecia quando estava
a gostar da conversa. De uma entrevista com ele era certo poder-se fazer duas ou
três e guardar ainda umas belas frases para um dia como o de ontem em que foi
anunciada a sua morte. Mas não vale a pena revolver a gaveta dos blocos para
encontrar a última que me deu porque ainda está muito fresca na memória. Como o
escritor Tabucchi falou! Do livro em causa, das traduções, dos outros já
escritos e dos ainda por escrever; de pensar em português mas não lhe ser fácil
escrever nesta língua; da cultura de Portugal, de Itália e de França; da
política de cá e de lá, do processo na justiça com o primeiro-ministro cantor. A
rua que agora perdeu um dos seus moradores chama-se Rua do Monte Olivete, onde
morava o vizinho que ao abrir a janela lia um romance inteiro na vida que
passava por aquela calçada de pedra negra.
João Céu e Silva, in Diário de Notícias
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