segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Oficina de Escrita - 10ºAno (Texto Diarístico)

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José Saramago, fotografado pelo argentino Daniel Mordzinski

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Mais trabalhos, outras turmas, outros anos:
Recebi alguns dos textos produzidos pelos alunos do 10ºAno no âmbito do estudo do Texto Diarístico: são a consequência do desafio lançado pelas palavras de Saramago "Contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia", outros do desafio para iniciarem um diário:
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1.
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Reencontro-me nas tuas páginas. Em todas elas. Fazem-nas uma sucessão de dias que outrora foram meus, que resistiram na minha memória. Faz hoje um ano que comecei a abrigar-me em ti, a partilhar as minhas mais íntimas confissões. Apareceste-me nu, pálido, gélido de solidão. Procuravas palavras que te acolhessem, palavras para guardar. Aprisionaste-me com o teu silêncio, a tua segurança que me acalmaram ao primeiro rabisco. Pude encontrar-te a meu lado, nos dias claros e nos dias escuros, quando sustinha a respiração durante cinco ou seis páginas e só a retomava quando tu me amparavas as lágrimas… Aí voltava a inspirar e sobrevivia. Controlaste-me no mais âmago instante. Desafiei-te a provar as mais inverosímeis constelações de amor, de amizade. Pintava-te todo de felicidade, nesses momentos, e tu retribuías-me, com um sorriso, a utopia que era narrar todos os meus sentimentos de incapacidade, de desespero… Partilhar contigo fazia-me reviver situações, contorná-las ou até mesmo ultrapassá-las.
Cresci e continuo a despojar-me de tudo em ti, a tornar-me transparente, quando escrevo e no que escrevo. Acredito sempre nas tuas respostas. Hoje, quando conto o meu caminho pelos dedos, encontro sempre a mão cheia, plena de memórias datadas e circunscritas em mim.
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A utopia alienada
da tua voz
em mim.
O cheiro intrínseco
a sangue
dos teus lábios
excede-me,
devora-me
até ao mais absoluto
abismo.
Gotas de sal
a pisar-me os olhos,
a percorrer o meu rosto
vermes.
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Engoli-me.
Fiquei presa
nas goelas do teu corpo,
no hálito quente
Sara, 10D
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2.
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Quantas vezes, pergunto-me eu, nos apercebemos do tempo que flui livremente entre nós? Quantas vezes caminhamos fora deste cíclico oblívio que é a vida nos dias de hoje? Sempre as mesmas rotinas, correr para aqui, apressar para ali, sempre os mesmos desastres, os mesmos vagabundos, sempre a mesma falta de tempo. Depois surpreendemo-nos quando vemos o tempo ganhar asas e zarpar para quem o merece mais, quando vemos o passado adquirir o mesmo tom monocordicamente neutro, sem nenhuma faúlha de inesperado. Choramos, então, a perda de grandes momentos, de grandes tempos, de grandes medos, quando, na verdade, ignoramos aqueles a que damos mais valor: os pequenos momentos.
Entram sub-repticiamente na nossa vida, pintando de cores o nosso coração e espelhando diamantes no nosso olhar, marcam a ferro a sua passagem, unem almas e, no fim, são muitas vezes ignorados. É para gravar estes fugazes momentos que escrevo este testemunho, este desafio ao tempo, para que, quando chegar a vez de outros, possa “contar pelos dedos” os dias que vivi feliz e “encontrar a mão cheia”, a transbordar.
Ana Cristina Maio, 10 E
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3.
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Querido amigo,
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Começo para nunca mais deixar
Outras palavras em outras mãos guardadas
Se tão importantes são tuas mãos inertes
Que afeiçoam meu coração tão lenta
E docemente como se faz à pobre gente
Enganada pela certeza que lhes mente.
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Tua presença encaminha o meu andar,
A minha postura e a minha alma
Se para expor só tu podes guardar
Caixa de segredos, memorial te podes tornar,
Tu, meu amigo, minha palavra, minha chave
Meu rosto, minha imagem, meu espelho
Meu caminho, meu destino, meu andar.
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Muito devagar, enquanto as carruagens desfilavam sobre os carris, os contornos da estação foram emergindo como uma miragem à minha volta.
Olhava aquele paraíso recente, como quem regressava sem nunca ter partido, como quem esperava em vão por algo amado, mas passado, por tempos vividos, mas não aproveitados. Não era o meu caso.
A ânsia da chegada sempre teve muito que se lhe diga.
A chuva só chegou ao anoitecer e quando começou a cair desabou em cortinas de gotas furiosas que, em minutos apenas, cegaram a noite e alagaram telhados e becos, sob um manto negro que fustigava com força paredes e vidraças.
Tatiana, 10A
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4.
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Porto, 13 de Janeiro de 2009
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Sempre fui assim: uma devoradora com cara de anjo. Ao longo da minha contagem dos dias pelos dedos, longe ainda de encontrar a mão cheia, procurei sempre algum sujeito a quem conseguisse desvendar os mistérios que tenho dentro de mim, os meus sentimentos. Agora que te encontrei a ti, estou mais descansada. A ti, sujeito inexistente, deverei criticar-te por nunca me dares opinião em relação àquilo que escrevo, ou deverei louvar a tua capacidade de não te pronunciares e respeitares os meus desabafos? Não sei. És mesmo assim, um sujeito indeterminado e silencioso.
É meu dever dizer-te que não é minha intenção escrever-te regularmente, dia após dia. Procurar-te-ei apenas quando for necessário, e não sei ao certo se vão ser muitas ou poucas vezes. Estranho, não é? Mas eu sempre fui assim, um ser pragmaticamente complexo. Há muito que deixei de acreditar em melhores amigos, mas sei que tu vais estar sempre disposto a ouvir-me. Sempre aqui, perto de mim, à distância de um abrir de gaveta. Coberta de pó e difícil de abrir. Não é uma tarefa fácil, de facto. Mas quero pedir-te só mais uma coisa. Que nunca me renuncies uma página, quando a minha única necessidade for caligrafar. Ama-me, quando eu menos merecer, e atenua as minhas lágrimas quando escorrerem de vez em quando por esta minha face bochechuda e rosadinha.
Ah, tenho pena de ainda não ter uma opinião formada sobre ti, talvez nunca chegue a ter, porque os diários são como a vida e como a filosofia: impossíveis de desvendar. Sei unicamente que te considero (e desculpa se isto soa mal) um herói. Não daqueles como o Super-Homem, ou o Príncipe Encantado da Cinderela, mas sim daqueles que não se revelam ao mundo e que entregam o músculo do lado esquerdo do peito a alguém, sem nunca pensar no amanhã. Até breve, querido diário.
Rita Barros. 10D
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5.
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Procuro escrever no teu corpo de papel a minha história e contar-te a minha vida, as minhas fraquezas, as minhas alegrias e tudo o resto... No fundo, quero criar contigo um segundo eu, exactamente igual a mim, que veja o mundo através dos meus olhos, que consiga ouvir o clamor das almas da terra como eu o ouço, que sinta com a minha pele o suave toque de um abraço, ou de um beijo; e que, no final, ganhe vida e se torne eterno, lembrando aos outros que também existi e não sou apenas mais um boneco de marioneta que o destino mexe como quer, tornando-se dono do mundo.
Gostava de te dizer a minha vida, do mesmo modo que o vento escreve a sua história nas folhas, rezando uma melodia que só ele conhece. No fim, quero ver-te cansado, velho e gasto, vivido em pleno e recheado de experiências. Quero-te assim, para depois "contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia".
Lília Alves, 10D/E
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