domingo, 22 de fevereiro de 2009

Memória - 10ºAno

...

.....

...
Anoitecia lenta e mansamente, naquela quinta-feira quente de Novembro. Não me recordo de alguma vez ter observado um crepúsculo tão límpido e intenso como aquele. Parecia que antecipava o acontecimento dessa noite. Desvanecia-se, tenuemente, no horizonte, arrastando consigo todo o frenesim urbano, para dar lugar às melodias silenciosas que se aproximavam com a luminosidade lunar.
Estava no autocarro e, por momentos, senti-me algures num campo deserto, acompanhada por um silêncio inquietante. Tinha acabado de sair do colégio, de uma aula de Português, e dirigia-me agora para a Casa da Música. Esperava-me esse edifício imponente e austero, com a porta dos artistas escancarada, para que todos os integrantes do espectáculo dessa noite (maestros, coralistas, instrumentistas e bailarinos) entrassem para pousar os seus pertences nos camarins.
Percorri atentamente o bar e, de seguida, entrei na zona reservada aos coralistas. Lá dentro, tudo se assemelhava a um labirinto com inúmeros corredores e portas imensas. Por fim, encontrei o camarim quadrangular que se destinava às raparigas. Os seus sofás cor-de-rosa e os espelhos que percorriam duas das paredes reconfortavam-me com a ideia de ir actuar naquela Sala de Espectáculos, uma das melhores da Europa. O cheiro quase imperceptível a flores frescas percorria toda a zona e, por instantes, permaneci em pé para me deliciar com a sinestesia de sensações que se apoderava de mim. As cores da sala oscilavam entre o cinzento-betão das paredes, os sofás garridos e o amarelo dourado incandescente, que provinha das séries de lâmpadas que acompanhavam verticalmente cada um dos espelhos. Havia também umas mesas em frente a estes e cadeiras individuais. Ao fundo, um bengaleiro e uma televisão mantinham-se imóveis e, por momentos, julguei estar enlevada numa utopia pueril e onírica.
Minutos depois, chegaram as minhas amigas e colegas e as suas gargalhadas sentidas e naturais acordaram-me dos meus pensamentos e mostraram-me que o que estava a viver era real. Apenas sorri - sorriso esse genuíno e rasgado que mantive ao longo de toda a noite.
Agora que tinha pousado a minha bolsa e a minha pasta, fui até ao hall principal, para ver se conseguia visitar toda a Casa. Tive alguns acompanhantes e, cerca de uma hora depois, estávamos de volta e convidámos todos os artistas para irem connosco até ao Centro Comercial Bom Sucesso para jantar qualquer refeição rápida, pois nervosos como estávamos, não tínhamos muito apetite.
Às 20h o espectáculo começou. Porém, nós só actuávamos na segunda parte e, por isso, ficámos com cerca de 45 minutos para nos arranjarmos.
Entre sedosos vestidos, brilhantes e suaves batons, rosas vermelhas e carnudas para pôr no cabelo e muitas capas pretas cheias de partituras, a boa disposição invadia a sala e alguns membros do sexo masculino também, embora aquele fosse um camarim feminino. Ajudámo-nos para fechar os vestidos umas das outras ou retocarmos a maquilhagem. No fim, o resultado foi incrível. Conseguimos, efectivamente, encarnar o papel de verdadeiras dançarinas de tango, para enfatizar a temática das obras de Astor Piazzolla que iríamos cantar.
Às 21h estávamos todos nos bastidores, prontos para subir ao temível palco. No meio de segmentos melodiosos do estudo dos violinos, acordes do acordeão, solos do saxofone, preces mudas e risos apreensivos, todos mantinham a sua expressão facial indiferente a tudo o que os rodeava e eu não era excepção. Era uma espécie de transe em que cada um entrava no seu mundo, na sua alma, nos seus sentimentos que jamais seriam revelados. É nestas alturas que vejo o quanto a música, e o conservatório em especial, influenciaram a minha vida. Onde me levaram, o que me modificaram e aquilo que me ofereceram e ainda oferecem…
O maestro chamou-nos e, quase instantaneamente, todos levantámos a cabeça e, com esta erguida, dirigimo-nos calmamente para a porta. Dali já conseguíamos ouvir os aplausos vindos de uma plateia repleta de olhares curiosos e ouvidos críticos. O chão do palco estava revestido de pétalas de rosa de um vermelho esbranquiçado, que emanavam um aroma doce e quente, que nos atrasava o passo. Tais pétalas tinham ficado esquecidas da ópera que tinha aberto o concerto. Ao percorrer o estrado, até alcançar o meu lugar, meditava silenciosamente, revolvendo a minha mente sobre quem estaria a assistir, como iria decorrer aquele quinto e último concerto desta tournée, quais seriam as reacções…Penso que me preocupava demasiado, porque já tinha passado por momentos assim antes e sabia como corriam, como teria de cantar, actuar, sentir, sorrir e, acima de tudo, concentrar. Finalmente, a primeira nota foi emitida pelo primeiro violino e tudo começou.
Estava perdida nos meus devaneios, quando começou. Naquele momento, já nada havia a fazer para remediar. Restava-me encarar o público e cantar com quanta felicidade sentisse e voz não me faltasse.
As cinco músicas foram passando mais rapidamente do que o que esperava, e parecia que ficava cada vez mais insaciada e que não podia aguentar sem mais uma melodia de tango, sem mais um passo de dança, sem mais uma rosa, sem cantar de novo nem ter mais uma vez a experiência de repetir tal concerto na Sala Suggia. Tentava saborear ao máximo cada declaração feita pelo saxofone e cada batida intensa e presente da bateria, mas, infelizmente, e com tristeza e alegria ao mesmo tempo, o concerto acabou com a arrebatadora Balada para un loco que libertou uma harmonia de calorosos e reconfortantes aplausos, que eram autênticos e únicos, fascinantes e inesquecíveis.
Depois de cerca de meia hora exclusivamente de Tango, puro e sentido, (pela qual ansiávamos todos os dias e agora só queríamos que durasse eternamente), os sorrisos cansados, mas felizes, eram imediatos e todos retribuíam as felicitações de “Parabéns”.
Sentia-me completa, mas com uma parte de mim a agarrar-se à recordação desta actuação o mais que podia.
Agora que tinha passado, restava-me a memória para guardar tal momento e o manter sempre comigo, a qualquer hora e em qualquer lugar. Ainda bem que a tenho, ainda bem que posso recordar, ainda bem que vivi, ainda bem que, no livro da minha vida, tenho esta página. Não esquecerei cada som, cada palavra, cada ensaio, cada música, cada crescendo e diminuendo, cada melodia…Não esquecerei porque não consigo. Não esquecerei porque foi demasiado importante. Essencial!


Ana Lúcia Rebelo, 10B



Sem comentários: