quarta-feira, 10 de junho de 2009

10 de Junho - Camões ou o sentido agudo da decadência

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"Este país te mata lentamente" (Sophia)
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Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Düa austera, apagada e vil tristeza.


Luís de Camões, Os Lusíadas
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Estavam no Loreto; e Carlos parara, olhando, reentrando na intimidade daquele velho coração da capital. Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brasões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Aliança conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo Sol dourava o lajedo; batedores de chapéu à faia fustigavam as pilecas; três varinas, de canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e ágeis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havanesa, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca, politicando.
— Isto é horrível, quando se vem de fora! — exclamou Carlos.
— Não é a cidade, é a gente. Uma gente feiíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada!...
Eça de Queiroz, Os Maias
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É inevitável assinalar o dia de Camões, o dia da lusofonia. Faço-o com o mesmo desalento que o poeta da pátria confessava sentir no final de Os Lusíadas. É no mínimo irónico que a última palavra da obra magna da língua portuguesa seja "enveja" (na edição de Costa Pimpão) - "inveja" e que, quatro séculos depois, Eça retomasse esse mesmo desalento, denunciando esse mesmo traço atávico e ancestral do povo português. O que haverá ainda para celebrar? Ou como diz Pessoa, o outro Camões, "Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!"
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1 comentário:

auxília disse...

Eu atrever-me-ia a acrescentar uma outra figura da nossa literatura portuguesa, Almada Negreiros, que, no início do século XX, em tom assumidamente provocatório, revela esse mesmo “sentido agudo da decadência” num texto cuja actualidade e pertinência nos deverá certamente perturbar…
Não apresento o texto na íntegra, dada a sua extensão, mas penso que os cortes não subvertem o seu espírito.


ULTIMATUM FUTURISTA ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉC. XX

Eu não pertenço a nenhuma das gerações revolucionárias. Eu pertenço a uma geração construtiva.

Eu sou um poeta português que ama a sua pátria. Eu tenho a idolatria da minha profissão e peso-a. Eu resolvo com a minha existência o significado actual da palavra poeta com toda a intensidade do privilégio.

Eu tenho vinte e dois anos fortes de saúde e de inteligência.

Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência do que nasceu completo e aproveitou todas as vantagens dos atavismos. A experiência e a precocidade do meu organismo transbordante. A experiência daquele que tem vivido toda a intensidade de todos os instantes da sua própria vida. A experiência daquele que assistindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apoteose do homem completo.

Eu sou aquele que se espanta da própria personalidade e creio-me portanto, como português, com o direito de exigir uma pátria que me mereça. Isto quer dizer: eu sou português e quero portanto que Portugal seja a minha pátria.

Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria.

Nós vivemos numa pátria onde a tentativa democrática se compromete quotidianamente.

(…)

Portugal é um país de fracos. Portugal é um país decadente:

1- Porque a indiferença absorveu o patriotismo.

2- Porque aos não indiferentes interessa mais a política dos partidos do que a própria expressão da pátria, e sucede sempre que a expressão da pátria é explorada em favor da opinião pública. Não é o sentimentalismo desta exploração o que quero evidenciar. Eu quero muito simplesmente dizer que os interesses dos partidos prejudicam sempre o interesse comum da pátria. Ainda por outras palavras: a condição menos necessária para a força de uma nação é o ideal político.

(...)

4- Porque o sentimento-síntese do povo português é a saudade e a saudade é uma nostalgia mórbida dos temperamentos esgotados e doentes. O fado, manifestação popular da arte nacional, traduz apenas esse sentimento-síntese. A saudade prejudica a raça tanto no seu sentido atávico porque é decadência, como pelo seu sentido adquirido definha e estiola.

(…)

9- Porque Portugal a dormir desde Camões ainda não sabe o novo significado das palavras. Exemplo: pátria hoje em dia quer dizer o equilíbrio dos interesses comerciais, industriais e artísticos.

(…)

FINALMENTE: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX.

(...)

Para criar a pátria portuguesa do século XX não são necessárias fórmulas nem teorias; existe apenas uma imposição urgente: Se sois homens sede Homens, se sois mulheres sede Mulheres da vossa época.
Vós, ó portugueses da minha geração, que, como eu, não tendes culpa nenhuma de serdes portugueses.
(…)

Tentai vós mesmos o Homem Definitivo.
Abandonai os políticos de todas as opiniões: o patriotismo condicional degenera e suja; o patriotismo desinteressado glorifica e lava.
Gritai nas razões das vossas existências que tendes direito a uma pátria civilizada.
Aproveitai sobretudo este momento único em que a guerra da Europa vos convida a entrardes prà Civilização.
O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.

Almada Negreiros