terça-feira, 20 de outubro de 2009

Escritaria - um testemunho

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Domingo à noite, o Museu Municipal de Penafiel (que eu não conhecia) encheu-se de centenas de pessoas para ouvir José Saramago e assistir ao lançamento “mundial” do seu último romance Caim. Assinalo com aspas «mundial» da mesma forma que Saramago, a propósito do evento, referiu, ironicamente, que não via, na sala, a presença de jornalistas do New Yorker

Penafiel foi, pois, palco de um acontecimento mundial, no seio de um acontecimento literário – Escritaria, 2º festival literário, um acontecimento que trará, indubitavelmente polémica, porque polémico foi o discurso de Saramago. Lembrei-me, ao ouvi-lo, das palavras de Pilar del Rio – "a grande literatura é sempre provocatória" – pois todas as referências do romancista a Caim revelam-nos uma nova incursão de Saramago no universo da(s) religião(ões), uma incursão claramente provocatória. O romancista referiu-se à Bíblia e, principalmente, ao Antigo Testamento como um “livro de maus costumes”, um livro em que a crueldade, a violência, a disputa são por demais evidentes nas várias narrativas que o integram. Acrescentou que “não inventa nada”, apenas “levanta pedras do caminho para que o leitor possa ver o que está por baixo delas”, lançando um apelo explícito a que cada um de nós possa, livremente, reflectir e analisar todo o mal que a religião (qualquer uma) fez à humanidade. Para Saramago, Caim “é um exercício de liberdade”, liberdade para o personagem e para ele próprio, enquanto escritor – “A liberdade do ser humano assim o exige.”



A encerrar o seu longo discurso, Saramago leu as páginas iniciais do romance como motivação para a leitura que, no seu dizer, irá certamente divertir o leitor, e prometeu um novo livro para 2010.



Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama

Indubitavelmente uma leitura polémica, mas certamente uma leitura que possibilitará a liberdade de cada leitor se posicionar criticamente sobre o seu conteúdo, qualquer que seja a sua crença religiosa.
Auxília Ramos
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E uma outra visão, sobre a polémica que estas afirmações causaram. Via José Rui Teixeira e Equinócio de Outono, fica o comentário de Tolentino Mendonça:
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José Tolentino Mendonça, director do Secretariado Nacional da Pastoral Cultura, manifestou à Agência Ecclesia a sua "desilusão" com a obra Caim, novo livro de José Saramago, que considera uma releitura "banal" do texto bíblico, longe das "páginas magistrais" de John Steinbeck em A Leste do Paraíso ou da interpretação do filósofo Paul Ricoeur da fraternidade como "decisão ética".
A obra ficou envolta em polémica quando o autor, a propósito da apresentação mundial do livro, afirmou que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana".
"A perplexidade trazida pelas afirmações de José Saramago é, no fundo, como é que um grande criador, um grande cultor da língua, pode, em relação a um superclássico da literatura mundial – património de cultura diferentes, fonte de inspiração para tanta literatura – pode dizer da Bíblia, com o simplismo e o olhar com que o fez, as coisas que Saramago tem dito", atira o director do Secretariado Nacional da Pastoral Cultura.
Tolentino Mendonça lamenta que, em Caim, José Saramago escreva que a Bíblia é "o livro dos disparates". "É uma redução inaceitável, não só do ponto de vista da fé, mas do ponto de vista da cultura", defende. Saramago é um leitor que "revisita permanentemente a Bíblia", seja em citações, seja nas suas personagens, mas o resultado desse esforço na sua última obra é, para o sacerdote madeirense, "absolutamente uma desilusão".
"Esperar-se-ia muito mais da revisitação que um grande escritor pode fazer do texto bíblico", indica, considerando que o livro de Saramago é, "em grande medida, um texto banal". A Bíblia está aberta a várias leituras, crentes e não crentes, mas nem todas são válidas.
O exegeta e poeta manifesta "perplexidade" por Saramago não tomar em consideração a necessidade de uma "interpretação" do texto, tomando-o à letra, "no seu absurdo". "O que impressiona neste opção é ele recusar que aquele texto precisa de uma interpretação, de uma leitura simbólica", declara. José Tolentino Mendonça realça que a Bíblia "é um livro de fé, que é lido a partir dessa perspectiva por milhões de pessoas, e ao mesmo tempo um livro de literatura, um superclássico".
Nesse sentido, é necessária "uma compreensão da Bíblia enquanto texto literário para verdadeiramente chegar ao seu sentido", é preciso "ir à terra do poeta", como se referia no Vaticano II, perceber que há "um sentido segundo, terceiro, que não se pode ler de forma literal e unívoca, que os géneros literários são para respeitar".
O sacerdote considera ainda que as declarações de José Saramago sobre Deus e a Bíblia estão muito marcadas pela ideologia do escritor, mais do que por uma tentativa de "recriação profunda das temáticas abordadas nos textos bíblicos".

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