quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Pessoa(s) - 12ºAno

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Pedimos aos alunos de 12º que analisassem a génese da heteronímia pessoana. Eis alguns resultados apresentados em turma (um vídeo e um texto):
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Ana Catarina Rodrigues, 12C

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Carta de Fernando Pessoa ao seu
Semi-heterónimo Bernardo Soares

Lisboa, 13 de Junho de 1930

Meu caro Bernardo Soares,

Finalmente chegou a oportunidade de poder falar contigo, agora que cheguei fatigado do escritório. Muito me apraz teres-te lembrado do meu aniversário, pois do teu dificilmente me recordaria, tão ocupado que estou com a minha pessoa, que uma não é (como de certo o sabes), mas quatro em simultâneo.
Não será ousado eu pensar, Bernardo, que hoje me visitaste de madrugada, quando estava abandonado às insónias? É que no silêncio do meu quarto pareceu-me adivinhar a tua figura sentada à minha secretária, iluminada pelo luar. Foi então que exclamei: “Ora viva! É o meu amigo Bernardo!”. Como não obtive resposta, convenci-me de que, para não variar, a minha imaginação me pregara uma partida. Ainda assim, fiquei com a sensação de que havias tentado comunicar comigo, e foi com satisfação que li a tua carta de parabéns. Bem sei, contudo, que o teu objectivo era o de compreenderes o porquê de teres sido excluído do meu círculo de heterónimos, não obstante o prefixo semi- que te concedi por compaixão.
Sendo hoje o meu quadragésimo segundo aniversário, que te parece que enquadre a génese dos meus heterónimos na história da minha vida? Estou certo de que concordas. Pois bem, nunca te apercebeste de algo omnipresente em ti, uma característica que fizesse parte das tuas raízes, e que em última análise condicionasse toda a tua personalidade? Não posso dizer que os meus primeiros anos foram miseráveis: a morte do meu pai abalou-me, como seria expectável, mas em compensação tive o amor da minha família, principalmente da minha mãe. Mesmo assim, o mundo extrínseco, ainda que agradável, sempre me pareceu insuficiente. Havia uma miríade de pessoas que poderia ter conhecido, diálogos que porventura teria trocado... E, olhando para o passado, reparo que a simplicidade da infância, que deveria contentar qualquer criança, constituía para mim um desperdício de sensações. E então, quase inconscientemente, passei a olhar a realidade por um certo prisma, prisma esse que elevava a vida simples de um menino a um mundo onírico, onde qualquer lacuna era preenchida com amigos imaginários.
Se me vires a atravessar o Chiado ou a trabalhar no meu escritório, consegues adivinhar o que se passa dentro da minha mente? Certamente que não. Uma pessoa nunca espera entrever um neurasténico (defino-me como tal, embora não saiba ao certo o que sou) num homem calado e de bons modos. O silêncio não significa necessariamente paz de espírito; pode estar a mascarar, inclusive, algo mais profundo. O que acontece é que, quando a oportunidade vem, o meu olhar volta-se para dentro. Olho para as coisas sem as ver, pois estou ocupado a assistir ao meu monólogo interior. E eis que, sozinho na plateia, vejo claramente três homens distintos a desfilarem pelo palco da minha mente. A ambiguidade desta situação acentua-se quando tomo consciência de que, neste instante, não sou uma, mas duas pessoas: o espectador e o actor. Respeitando as leis da cronologia, surge o Ricardo Reis, médico portuense, de estatura baixa e semblante sério, e que vive no Brasil desde 1919 por ser monárquico. Curiosamente, ele apareceu por acaso. Erro meu! Os meus «eus» nascem em mim com um propósito; eu é que, por vezes, não o desvendo à primeira. Depois de escrever uns poemas de cariz pagão, senti-me estranho. Não tinham muito a ver comigo, e ainda bem, pois assiná-los com o meu nome seria plágio. O Ricardo apareceu para expressar uma visão estoicista da vida, uma reflexão abstracta que conduzia à consciência da nossa efemeridade. Estás confuso com este jogo de máscaras, Bernardo? Uma coisa te digo: primeiro, estranha-se; depois, entranha-se. Agora irei falar do meu Mestre (meu, do Ricardo, e do Álvaro, o qual mencionarei a seguir). Uma conversa com o meu amigo Sá-Carneiro desencadeou uma série de acontecimentos que levaram à criação do pastor Alberto Caeiro. Duvido que exista pessoa mais ignorante que ele, e por isso mais feliz na sua ignorância. A sua atitude faz-me lembrar a de uma criança, pois ama o mundo que observa sem qualquer reserva. Por vezes me espanto, pois parece impossível que seja eu o autor da sua filosofia do não pensar. Não é contraditório? Ele morreu há mais de uma década, mas a sua figura ainda simboliza para mim o que eu nunca conseguirei ser. É por sermos tão opostos que ele é o meu Mestre. Como discípulo, tento seguir-lhe as passadas, ainda que saiba que nunca o vá alcançar. O outro heterónimo é o engenheiro naval Álvaro de Campos, meu gémeo nesta fase final da sua vida. O Álvaro representa, digamos, a faceta da minha personalidade que procuro esconder, o histerismo no seu expoente máximo. Todas as minhas emoções fortes (e algo vergonhosas, diga-se de passagem) são abafadas e, assim, canalizadas para um sítio aonde ninguém tem acesso excepto eu.
Tens de compreender, Bernardo, o que te diferencia destas três personalidades. Quando escrevo de modo espontâneo como Caeiro, intelectual como Reis, ou extravagante como Campos, o meu ser fluí pelas suas identidades livremente. Pintei o quadro das suas vidas, moldei os seus traços psicológicos e físicos, enfim, contornei nitidamente o que inicialmente eram formas indefinidas.
O que são estes três homens senão a expressão de posições opostas sobre a vida, a estética, e a literatura? Já te apercebeste, Bernardo, de que esta diversidade tão grande de mentalidades reflecte a minha multiplicidade interior? A vida, por vezes, é tão vazia de conteúdo e de pessoas que se torna necessário simular outras vidas para experienciar o que me passa ao lado. Ser complexo, Bernardo, permite-me ser todos, e, assim, nenhum. Os heterónimos representam o nada que é tudo. Sem eles, o vulgar e solitário Fernando Pessoa deixa-se subjugar pelo tédio.
É nestes devaneios e angústias existenciais que a fadiga incentiva que eu recorro a ti, Bernardo, um pobre ajudante de guarda-livros. És como uma muleta, um estado de quase inconsciência, um andar ausente pelas ruas de Lisboa. Careces de vida autónoma, meu caro amigo (não quero que te sintas diminuído por isto!).
Concluo a minha carta com um pensamento profundo, bem ao teu gosto. A Arte tem fim na própria Arte. A actividade literária dos meus heterónimos busca a beleza estética que só eles tornam possível.
Espero que te tenha esclarecido quanto à tua condição de semi-heterónimo.
Cumprimentos,
Fernando Pessoa.

PS – Obrigado pelo manuscrito que me emprestaste do teu “Livro do Desassossego”. Apreciei particularmente este fragmento, reflecte precisamente a angústia de me saber sempre só: «(…) De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.».
Filipa Alves Santos, 12B

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