quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Rosa Lobato Faria

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Rosa Lobato Faria tinha 17 anos e queria ser actriz. O pai deu-lhe a escolher. Ou ia para a faculdade em Coimbra, com tudo pago, ou para o conservatório, em Lisboa, pagando o curso com um emprego. Aceitou a vontade do pai. Foi estudar Germânicas. Isso quanto tinha 17 anos. Porque depois Rosa Lobato Faria, mulher forte e convicta, foi mesmo actriz. E poeta, escritora, argumentista e compositora. Quando questionada, respondia ser escritora. Mas, acto contínuo, acrescentava que ser actriz não era muito diferente: criar personagens e dar-lhes vida.

Rosa Lobato Faria estava a escrever um novo romance (Mário Santos/Porto Editora).

Lançando o olhar sobre a sua vida, sobressai uma presença, constante e multifacetada. Começou a divulgar poesia na RTP, durante os anos 60, em colaboração com David Mourão-Ferreira, e integrou o elenco da primeira telenovela portuguesa, Vila Faia. Foi letrista com lugar reservado na história do Festival da Canção, com Amor de Água Fresca, cantado por Dina, ou Chamar a Música, por Sara Tavares, e uma escritora que, poeta há muito, chegou tarde ao romance. Aos 62 anos, com O Pranto de Lucífer, publicado em 1995. Chegou a tempo: dez romances e um deles, O Prenúncio das Águas, distinguido em 2000 com o Prémio Máxima da Literatura.

O seu editor, Manuel Alberto Valente, lamenta a "perda de uma grande amiga" e "uma pessoa extraordinária" e recorda como o seu primeiro romance, aparecendo já numa idade madura, "trazia para a área da ficção essa marca poética muito forte em todo o trabalho dela".

"Tinha prometido entregar-nos brevemente o novo romance que queria publicar ainda este ano", revela. "Não sei em que fase estava da escrita, mas vou agora tentar saber junto da família."

Rosa Lobato Faria dizia que toda a poesia e literatura que escreveu partiu do Alentejo das suas férias de infância - daquela paisagem, dos cantares das pessoas, da força da tradição que ali pressentia. Também nisso era múltipla: mulher moderna e cosmopolita, mas que nunca escondeu um imenso fascínio pela cultura popular.

Romancista, obviamente

O realizador Lauro António, que a filmou em Paisagem Sem Barcos (1983) e Vestido Cor de Fogo (1986), recorda-a como "uma pessoa muito delicada, sensível, de uma grande elegância, mas ao mesmo tempo muito intensa ao nível das suas convicções e paixões". Destaca: "Deixa uma marca forte no mundo do espectáculo e da cultura portuguesa." E acrescenta que "não sendo uma feminista militante, tinha uma personalidade forte, ajudando a alterar a imagem da mulher em Portugal nos últimos 50 anos".

Ela, que como nos refere Herman José, "odiava que a reduzissem a "autora de letras para cantigas"", deixou-nos no ouvido alguns dos momentos mais memoráveis no humor da televisão portuguesa. Com Herman, precisamente.

São dela as letras dos genéricos de Casino Royale, Crime na Pensão Estrelinha e Humor de Perdição. O humorista recorda a participação de Lobato Faria naquele último programa, onde interpretava Dona Cândida, "senhora das avenidas novas, que alugava quartos e se apaixonava por um boçal José Esteves": "Conquistou-nos a todos com a sua alegria e a sua transbordante juventude e, na sequência da morte de Carlos Paião, acabou por ocupar o espaço deixado livre na autoria de versos humorísticos para os meus programas e canções." Porém, aponta Herman, "o seu sonho foi sempre ser aceite como romancista".

No momento da sua morte, recordamo-la pelas letras das canções que escreveu, pela presença na televisão e no cinema, pelo teatro e pela poesia compilada em volumes como Os Deuses de Pedra (1983). Recordamo-la também, obviamente, como romancista. O seu último livro, As Esquinas do Tempo, foi publicado em 2008. A sua obra, como refere em comunicado a Porto Editora, "está traduzida em Espanha, França e Alemanha e representada em várias colectâneas de contos, em Portugal e no estrangeiro". Rosa Lobato Faria cumpriu o seu sonho.

in Público

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