quinta-feira, 13 de maio de 2010

Leitura(s)...



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É com prazer que anuncio a colaboração de um colega de Ciências no Lusografias. Deixo as sugestões do professor André Rodrigues:
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Um livro são emoções, são reflexões, mudanças na forma de ver e sentir o mundo, de nos posicionarmos em relação a nós e aos outros. Desculpem, falo de um bom livro, não de um qualquer conjunto de letras organizadas em frases e capítulos, que apenas nos gastam fotorreceptores da retina! Mas, mantendo o fio na meada, gostava de falar sobre dois bons livros que li ultimamente (dois e não um porque poderiam até ser livros-irmãos, de tão próximos nos temas e no que despertaram em mim): Sobre Humanos e outros animais (John Gray, Lua de Papel) e O Filósofo e o Lobo (Mark Rowlands, Lua de Papel) falam de humanos, de lobos e animais no geral, de consciência, amor, morte e, no fundo, sobre o que todos (humanos e outros animais) buscamos, o bem-estar ou a felicidade.
Dois livros que misturam animais e reflexões mais ou menos filosóficas agradam-me, não nego. Mais do que respostas, encontrei um conjunto grande de questões, para juntar às que fui coleccionando no meu caminho, e que, ao invés de me deixarem frustrado por perceber o pouco que sei e a desproporção tremenda em que as minhas certezas vs dúvidas se encontram, me deixam mais livre, mais tranquilo, mais atento ao Tempo e à necessidade de o saborear e ouvir e tocar, mais livre de quadros mentais que me induzam no (talvez terrível) instinto de formar categorias constantemente (carregamos esse instinto da nossa história evolutiva), de fazer contas a cada segundo, de ter uma explicação para tudo.

Deverei revelar algo sobre os livros, devo, para motivar para a sua leitura, isto não é retórica!

Ora, poderão esperar, no primeiro, a contextualização histórica, de um ponto de vista filosófico em particular, da posição do Homem e dos outros animais no mundo vivo (surgem referências a praticamente todos os grandes filósofos, todos eles reflectiram de alguma forma sobre a dicotomia Homem / Natureza), e considerações sobre a importância real da consciência na nossa percepção do mundo e dos outros e nas nossas acções. Algumas ideias: 'A realidade subjacente à experiência – a que Kant chamou o mundo numenal das coisas em si – é incognoscível.' (…) 'A teoria darwiniana diz-nos que o interesse na verdade não é necessário para a sobrevivência ou a reprodução. Muitas vezes é mesmo uma desvantagem.' (…) 'Porque deverá um jovem reprimir as suas paixões florescentes em benefício dos interesses sórdidos da sua própria velhice fanada? Por que motivo esse velho problemático, que usará o mesmo nome que ele dentro de 50 anos, estará mais próximo dele neste momento do que qualquer outro ser que se possa imaginar?'

Do livro que nasce da relação entre um filósofo decadente e um lobo podem encontrar-se histórias perfeitamente comuns da relação de um homem com o seu animal de estimação (?), mas sempre como mote para pensar essa mesma relação, a vida do cão enquanto espécie eminentemente domesticada, do lobo enquanto ancestral hoje e sempre selvagem e indomesticável, das vidas que levam na companhia do seu dono, que acontece ser um filósofo hedonista com progressivo afastamento e desinteresse pela partilha com outros humanos e vício do álcool, e uma quase fusão com os seus animais, não num sentido religioso ou metafísico, mas uma aproximação à realidade comum a todos os animais, que, embora o neguemos e soframos com isso, é o grosso da nossa vida. Escreve Rowlands, referindo-se ao seu irmão lobo: 'A maneira mais importante de recordar os outros é ser a pessoa que fizeram de nós – pelo menos em parte – e viver a vida que nos ajudaram a delinear'.
Para terminar, saliento a excelente bibliografia que nos é apresentada em ambos os livros, que nos abre as portas para outras leituras, isto é, outros voos de reflexões e (re) construções de quem somos e queremos ser. Ficam duas ideias ousadas, provocações, se assim quiserem chamar-lhes, sobre a Vida, o Trabalho e o Tempo, para (preciosos) momentos de ócio...
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' Nada é mais estranho à época actual do que a ociosidade. Quando pensamos em repousar dos nossos trabalhos, fazemo-lo apenas com o objectivo de a eles regressarmos.'

'Os outros animais não precisam de um propósito na vida. Contraditoriamente, o animal humano não pode viver sem ele. Não poderemos pensar que o propósito da vida poderá passar pela sua simples observação?'
André Rodrigues

1 comentário:

auxília disse...

André, muito obrigada por partilhares esta tua experiência de leitura connosco. Fiquei muito motivada para descobrir um pouco mais dessa "mistura" inusitada de animais e filósofos. Sobretudo tocou-me essa forma desafiadora de vivermos a vida, observando-a, simpesmente. Estaremos diante de uma tentativa de regresso aos primórdios da humanidade?...

Um abraço.