domingo, 4 de dezembro de 2011

Livro do mês - dezembro


A análise da poesia de José Rui Teixeira apresenta-nos com clareza a consciência que se vem agudizando, sobretudo, nas antologias do final do século passado (década de 90) e nos primeiros anos do século XXI (nomeadamente, sob a organização de Jorge Reis-Sá, Ricardo Nunes e Manuel de Freitas), de que a Pós-modernidade se caracteriza por uma menor capacidade de inovação e de ruptura e uma certa tendência para a recuperação e regresso a programas estéticos do romantismo e simbolismo. A dita «poesia nova» ou «novíssima» (para enfatizar que a sua criação é de agora mesmo) só o é, em termos periodológicos e cronológicos, e não enquanto categoria epistemológica. Só pode ser encarada como novidade, no sentido em que toda a palavra poética é uma palavra nova e inaugural, conduzindo alquimicamente à verdade e ao Absoluto.
Sem que haja propriamente a noção de «geração literária»
, a poesia contemporânea pauta-se pela diversidade de discursos, pela segmentação e heterogeneidade, separando-se, por isso, do Modernismo e das Vanguardas, revelando uma postura mais nihilista e pessimista face à cultura e ao tempo. Esta espécie de alienação alimentada por um «pensamento frágil» (Lyotard e Vattimo) e a pluralidade são precisamente argumentos da Pós-modernidade.
Por outro lado, desenha um movimento de ênstase e de ênfase no sentido (Mircea Eliade), de mergulho na interioridade e de revalorização da experiência. Ressurge, novamente, a instância enunciadora e a subjetividade que lhe é inerente. Desta forma, a linguagem passa a interpretar a própria experiência, o próprio corpo, a própria interioridade, e acentua-se a tensão emocional do poema. Talvez por isso se possa afirmar estarmos perante uma poesia figurativa ou da experiência, pelo regresso anunciado ao lirismo figurativo, mais próximo da pintura.


Em José Rui Teixeira, este itinerário do silêncio e da solidão faz-se através do tema da morte. Partindo do pressuposto de que a morte revela a verdadeira condição humana, o poeta consagrará a sua escrita como estética do medo e metáfora dessa mesma morte. Algumas aporias foram levantadas: como representar a morte na obra de arte, se esta não foi diretamente vivenciada? Qual a relação entre a mulher, símbolo de fertilidade, e a morte? Ora, a escrita representa para o poeta a oportunidade de mortificação e de experiência de morte; além disso, a perda da figura materna permite-lhe, pela memória, recuperar e duplicar a dor sentida pela ausência e pelo vazio. Deste modo, é pela morte que o sujeito poético acede à reflexão metafísica e existencial, tomando o seu mundo interior como referência. A abertura fenomenológica só se consubstancia através da errância e do vazio. Uma outra leitura possibilita resolver a segunda aporia: a morte simboliza o profundo desejo de reintegração no ventre materno, a angústia da castração e a tensão libidinal acumulada.



Este último aspecto remete-nos para o papel da mulher nesta obra. Verificamos que há uma íntima relação entre mulher e morte. Mais uma vez, estamos no campo do dilema: como explicar que mulher e morte coincidam semanticamente? Assistimos a uma forte tensão entre a figura da mãe e a da mulher violentamente erotizada, entre a mulher que gera e alimenta e a mulher amante. Quer num caso, quer noutro, temos, mais uma vez, a relação com a morte. A suposta fertilidade de semas como “ventre”, “útero” e “sangue” remete, nesta poesia, para a ideia de vazio e de morte; na verdade, o homem só vive plenamente quando está dentro do útero e, portanto, o útero e o ventre contemplados de fora são símbolos do nada e da aniquilação. O mesmo acontece com as referências explícitas à sexualidade: o homem é expulso do corpo da mulher, com o mesmo ímpeto com que esta dá à luz e expele a criança. Fora da mulher, inicia-se a morte, há só morte.




Outro dos traços da sua obra é a sistemática citação da narrativa bíblica e a contribuição para uma "mitologia do sagrado", como apontou Fernando Guimarães. Em articulação com os evangelhos, o poeta procede a uma profunda reflexão escatológica, elegendo a sua poesia como “lugar de um conjunto de intuições teológicas”. Numa declarada atitude pós-moderna, José Rui Teixeira aproxima a religião da cultura. Através do mito, a realidade revela a sua essência (ontofania e epifania) e o sagrado torna-se a própria realidade. Enquanto religação, a religião surge aqui como símbolo de envolvimento do poeta com o sagrado e com o absoluto (teofania) e a mitificação como forma de conhecimento.
Paradoxalmente, encontramos poemas seus que soam como autênticos salmos e litanias e, simultaneamente, outros, que, numa operação de desconvencionalização dos símbolos bíblicos, se instituem como imagens-choque e autêntica subversão e dessacralização dos evangelhos. O sagrado é, assim, vislumbrado à luz do humano, do profano, não deixando, por isso, de ser menos sagrado; bem pelo contrário, encontrado o rosto humano (e feminino) de Deus, o poeta refaz a leitura bíblica através da recomposição mitológica, em que a sexualidade e o erotismo ( e a partir daí o resgate da mulher) são caminho de sacralidade. É todo um programa inaugural que abandona a visão do homem à semelhança de Deus e, num percurso inverso, passa a medir Deus (deus) à semelhança do homem.




Também em relação à linguagem e estilo se aplica aquilo que se concluiu sobre a tendência pós-moderna desta poesia, ao retomar e dar continuidade aos programas estéticos do romantismo e do simbolismo. De facto, verifica-se um tom melancólico e nostálgico, próprio da sensibilidade neo-romântica e uma certa predileção pela morte enquanto tema e semantema.
O vocabulário inusitado contribui para uma inegável e original renovação lexical, alterando a dicção poética tradicional. As imagens perturbadoras, e em certo sentido surreais, povoam um discurso extremamente pictórico e sugestivo que é produzido por múltiplas vozes (polifonia aliás enfatizada pelo recurso ao discurso direto e à inclusão objetiva de um interlocutor omnipresente). Destacamos, ainda, a expressividade das metáforas e dos símiles que perpetuam a rede temática (da morte).
A sintaxe concisa obedece à estrutura tradicional e apenas a pontuação parece perpassar a transgressão, ao esquecer intencional e sugestivamente o ponto de exclamação e de interrogação, deixando ao leitor um papel ativo na vivência emocional da entoação poética.
Finalmente, encerramos com as palavras de Miriam Reyes, ao posfaciar a edição de Assim na Terra , que parecem alcançar o enigma insondável desta poesia que “abre os olhos na escuridão”:

“Porque lo que escribimos es luz refractada. Es cierto, no puedo explicaros lo que he visto, también para leer hay que hundir la cabeza y abrir los ojos en la oscuridad”.




Sem comentários: