quinta-feira, 6 de março de 2008

Há barcas no cais...


. Caracterização do Frade

A entrada em cena do clérigo é frequente na obra vicentina. Comprometido com a Igreja (fez votos de castidade e de pobreza), este frade é, afinal, um libertino que canta e dança, e surge comprometido, sim, mas com uma Moça, Forença.
Também os seus elementos cénicos são pouco próprios de um homem de igreja, revelando o seu carácter cortesão e a subversão moral deste suposto homem santo. A espada e o escudo, bem como a Moça, representam os pecados que o Frade cometeu e os votos que quebrou.
Apresentando como argumentos de defesa a sua (falsa) devoção (“com tanto salmo rezado?”) e o seu próprio estatuto religioso (“E est’hábito no me val?”), o Frade não é sequer digno das palavras do Anjo, para quem a própria presença de Florença constitui um insulto à fé cristã. O Diabo recorre à ironia e ao sarcasmo com frequência nesta cena (“Devoto padre marido”), expressando bem a euforia que sempre o acompanha quando detecta potenciais candidatos ao fogo infernal.
A linguagem desta personagem está carregada de termos religiosos, No entanto, o seu comportamento é totalmente mundano, revelando dissolução moral e relaxação dos costumes.
Durante toda a cena, é possível observar os vários tipos de cómico. O cómico de linguagem é introduzido ora pelo Parvo (“Furtaste o trinchão, frade?”), ora pelo Diabo, que criticam com ironia e humor as acções do Frade em vida. O cómico de situação e de carácter é perceptível durante a lição de esgrima, quando a personagem brame a sua espada e revela um carácter folião e divertido.
Esta cena e esta personagem constituem, como é aliás apanágio de Mestre Gil, uma crítica feroz ao Clero de então (“Eles fazem outro tanto”). Note-se, por fim, a simbologia do nome da Moça (Florença), que remete para a cidade italiana e para o país da Reforma.
Alexandra Sousa



. Caracterização da Alcoviteira

Por definição, com carga extremamente depreciativa e pejorativa, uma alcoviteira é alguém que se dedica à prostituição. Nesta cena, a personagem denuncia a degradação moral da sociedade.
Brízida Vaz apresenta como elementos cénicos “as moças que vendia” e um armário, que traduzem os seus pecados: a prostituição, o roubo (“furtos alheos”), a feitiçaria (“três arcas de feitiços”) e a mentira (“seiscentos virgos postiços”, “três almários de mentir”, “dois coxins de encobrir”). O facto de trazer o armário consigo denota uma certa esperança na continuidade da sua actividade post-mortem.
A linguagem utilizada por esta personagem é extremamente ambígua. Por um lado, recorre ao vocabulário religioso, de forma hipócrita e descarada, proclamando-se “apostolada”, “angelada e martelada”, ou seja, uma mártir, comparável a Santa Úrsula pelas moças que “converteo”; por outro lado, adopta um registo de sedução (perante o Anjo): “meus olhos”, “Anjo de Deos, minha rosa”, “meu amor, minhas boninas / olho de perlinhas finas”, tentando criar uma certa proximidade com o interlocutor e persuadi-lo a deixá-la embarcar.
Nesta cena, é notória a ausência de argumentos de acusação, o que pode ser justificado pelo facto de a própria personagem os referir no seu discurso (“eu sô aquela preciosa / que dava as moças a molhos, / a que criava as meninas / pêra os cónegos da Sé…”). Visto o Anjo recusar embarcá-la na Barca Divinal, dirige-se ao Arrais do Inferno, sendo bastante bem recebida pelo último. Note-se, finalmente, como se alarga nesta cena a crítica ao clero (“a que criava as meninas / pera os cónegos da Sé”).
Bárbara Pereira

Gil Vicente evidencia, nesta cena, que quem quer desfrutar dos prazeres carnais e materiais jamais poderá desfrutar dos espirituais: “entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que seguem por ele” (Mateus, 7: 13)
Pedro Cardoso



. Caracterização do Judeu


Semifará traduz a verdadeira marginalização e rejeição de toda uma classe. Cedo Gil Vicente nos remete para os pecados deste Judeu (o apego ao dinheiro e a ganância), através da tentativa de suborno do Diabo (“Passai-me por meu dinheiro”). Destaque-se que o Demo, geralmente ávido por tripulantes, recusa o passageiro (“Oh! que má-hora vieste!). O próprio bode, elemento cénico fulcral, é rejeitado por ser símbolo da sua fé (“Nem eu nom passo cabrões”).
Tentaria igualmente aliciar o Fidalgo (“Ao senhor meirinho apraz? / Senhor meirinho, irei eu?”), o que denota que seria prática corrente a obtenção de favores da nobreza a troco de dinheiro.
Nem as imprecações que lança (“lodo, chanto, fogo, lenha”) conseguem descomprometer o Judeu da sua condição de pecador.
É Joane, na sua intervenção marcada pelo cómico de linguagem, que acusa o Judeu de ter roubado, profanado e desrespeitado o jejum (“mijou nos finados”, “comia a carne da panela / no dia de Nosso Senhor”), alertando para a sua falsa vivência religiosa.
Assim, o Diabo consente a passagem do Judeu, marginalizando-o, no entanto, pois “era mui ruim pessoa” e iria “à toa”, com “o cabrão na trela”.
Mestre Gil denuncia, portanto, a marginalização de que eram alvo os judeus, deixando Semifará de fora, mesmo que do Inferno.
António Cerejo



. Caracterização do Corregedor e do Procurador

Ao Cais, após o Judeu, vem um Corregedor carregado de feitos, e, com a sua vara na mão. Estes seus elementos cénicos servem para conceder verosimilhança à sua personagem, à sua profissão. Simbolizam também a corrupção como juiz, assim como os seus pecados, que não se perdem aquando da sua morte (os pecados continuam a ser válidos depois da morte). Mal chega, antecipa tudo e todos para a sua importância social: "Está aqui o senhor juiz". Logo o Arrais Infernal com a sua ironia maliciosa denuncia um dos seus pecados mais marcantes, de uma forma extremamente subtil ("Oh amador de perdiz" – as perdizes funcionavam como um suborno). O Corregedor nega, como é hábito dos condenados, todos os actos de que é acusado. E quando o Demo o avisa do seu destino para o Inferno, muito espanto demonstra ("À terra dos demos/há-de ir um corregedor?"). Logo o Diabo lhe responde com ironia, chamando-o de “Santo Descorregedor”, o que demonstra a sua pecaminosidade, assim como a sua falsa vivência religiosa. Aí, o condenado inicia um discurso em latim, porém, é um latim jurídico, que também confere à cena uma certa verosimilhança (regulae juris). Já o Demo surge com o cómico de linguagem, utilizando um latim macarrónico e deturpado: "Non es tempu". E quando se começa a aperceber da inevitabilidade da sua situação, tenta, como o Judeu, comprar o Fidalgo, pois sabe que este “não diz não ao dinheiro”, isto é, sabe que o conseguiria subornar ("Há’qui meirinho do mar?"). Também demonstra alguma cumplicidade para com o Fidalgo e aqui Gil Vicente avança com o alargamento da crítica a todos os estratos sociais corruptos. Faz-se também alusão aos Judeus – alargamento da crítica – numa das acusações do Arraias Infernal ("E as peitas dos judeus/que vossa mulher levava?"). O Corregedor defende-se dizendo que foram pecados da sua esposa, e verificamos até uma certa ambiguidade no sentido da expressão ligada aos judeus (“Bode Expiatório”), já que, efectivamente, a mulher arca com as culpas do juiz ("Nom som peccatus meus, / pecavit uxore meã"). Mais uma vez o Demo o acusa da sua putrefacção, quando lhe comunica que enriquecia à custa dos lavradores mas nem sequer lhes dava ouvidos. O alargamento da crítica surge novamente, com a censura aos escrivães ("e veres os escrivães/ coma estão tão prosperados"), numa crítica a todo o sistema judicial e aos seus erros.
Chega então o Procurador, carregado de livros que, como no caso do Corregedor, demonstram a continuidade dos seus crimes, além do seu conhecimento e estatuto intelectual. Demonstram ambos uma intimidade extrema quando se vislumbram, comprovando a sua cumplicidade até nos crimes – "Bejo-vo-las mãos, Juiz!". Também o Procurador não tem consciência da inevitabilidade da sua situação, crendo que o Demo está zombando ("Jogatais de zombador?") E surge depois uma das mais importantes críticas da cena, a falsa religiosidade das personagens. O Demo avisa-os de que iram para o Inferno, e o Procurador responde em tom muito seguro que não esperava a morte e por isso não se tinha confessado. Logo o Corregedor afirma que confessou todos os seus pecados, mas tudo quanto roubou encobriu ao confessor. E após este discurso de confissão, ainda está certo da sua salvação, o que revela a sua hipocrisia.
Por fim, a crítica do Anjo e do Parvo tem por base o “peso” dos pecados dos "filhos da ciência", pelo que não embarcaram na Barca da Glória. Ambos resignar-se-ão no final da cena e com Brízida Vaz, conhecida sua, embarcam para a Terra dos Danados…
Ana Isabel Costa

. Caracterização do Enforcado

Mestre Gil introduz nesta cena um enforcado que morreu condenado devido à vida pecaminosa que levou. Como elementos cénicos, traz um “burel” e um “baraço”, denunciadores da sua condição de supliciado e criminoso.
Na verdade, o protagonista apresenta-se como uma personagem ingénua, pois acreditou no discurso erróneo de salvação proferido por Garcia Moniz (“diz que os feitos que eu fiz/ me fazem canonizado”).
Dócil e volátil, após reconhecer a perfídia de quem o julgou, continua crédulo (“mil latins/ mui lindos”), mas já triste e resignado (“E ele leva a devação / que há-de tornar a jentar… / Mas quem há-de estar no ar” e “Não me falou em ribeira / nem barqueiro, nem barqueira,/ senão logo ó Paraíso”), apresentando-se uma vítima da sua própria condenação, já que se insere numa classe marginalizada, razão pela qual o Arrais dos Céus não entra em cena (o enforcado já tinha sido condenado em vida).
Embora simples e vulnerável, revela, tal como a maioria das personagens anteriores, uma falsa religiosidade (“eram horas dos finados / e missas de São Gregório”).
Em suma, Gil Vicente, no seguimento da cena anterior, pretende denunciar as falhas da justiça terrena, alargando a crítica à classe jurídica, já que a verdadeira e única justiça é a divina.
Ana Lúcia Rebelo

. Caracterização dos Quatro Cavaleiros

Com uma entrada triunfal em cena, “cantando” um hino apoteótico, os Quatro Cavaleiros provam que a salvação apenas é alcançada pela fé (“pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros”). Além disso, a cena propõe a santificação da guerra (“Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm”).
Convictos da entrada na Barca de Glória, recorrem a uma linguagem exortativa e alegre, dirigindo-se desde logo ao batel divinal, “passando per diante do batel dos danados”, sem se deterem e quase ignorando o Diabo.
O Arrais do Inferno, perplexo com tal actuação, acaba por se submeter aos Cavaleiros, que falam com altivez e dignidade (“Vós, Satanás, presumis? / Atentai com quem falais!”), afirmando que “quem morre por Jesu Cristo / não vai em tal barca como essa!”).
Por fim, caminham até ao Arrais Sagrado, que os recebe e os defende (“que morrestes pelejando / por Cristo, Senhor dos Céos!”; “quem morre em tal peleja / merece paz eternal).
“E assi embarcaram”, salvos pela fé e corroborando a máxima da doutrina cristã “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor de justiça, porque deles é o reino dos Céus".
Finalmente, acrescente-se apenas que esta cena parece assumir-se como moralidade do próprio Auto: “neste rio está a ventura / de prazeres ou dolores!”.
Ana Lúcia Rebelo

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