segunda-feira, 10 de março de 2008

Sugestão de leitura 10ºAno



Acabadinho de sair...
Deixo as palavras do autor, retiradas de www.asa.pt

A primeira conversa feita com os que o conheceram foi sempre difícil. E se me apresentava como jornalista pior ainda, portanto, à terceira foi de vez e a partir daí deixei de mencionar esta parte da identificação. Não sei se todos os que com quem falei, amigos da roda mais íntima de Miguel Torga, desgostam assim tanto daqueles que fazem perguntas e jornais como acontecia com o poeta, mas se assim não era bem o imitavam. Mas, a vontade de refazer a imagem do homem e do escritor era mais forte do que as recusas iniciais, que obrigatoriamente eram contornadas com palavras e compromissos de que o diálogo respeitaria a vontade do autor em manter-se no mesmo anonimato com que vivera e convivera, e a investigação lá foi andando. Relembro as justificações do padre Valentim que logo anunciou uma viagem à Alemanha para o dia em que queria encontrá-lo; o aviso de que não daria nenhum depoimento feito pela filha Clara; o recolhimento da vizinha Conceição que me remetia constantemente para um texto seu; a recusa do meu colega João Fonseca em aparecer...
Mas as conversas foram tendo lugar, a persistência foi definindo o retrato de um poeta que se confunde com o homem e, nos seus lugares de eleição, foi-se reencontrando o que os escritos descreviam de si e do País que tanto gostou. Foi-se fazendo uma longa viagem por milhares de páginas de uma obra de características muito particulares, sobrepondo-a às visões que capturou no território onde nasceu e fez questão de viver, tendo como cenário principal os capítulos do seu livro Portugal. Um percurso realizado em camadas sucessivas como fazia Miguel Torga ao aprimorar os seus originais – há quem contasse onze versões até à final –, numa vontade de fundir a sua produção literária com o sentir, o pensar e a vivência que tanto sentiu, pensou e viveu.
Durante o governo de Salazar, ter um diário era correr um perigo acrescentado à contestação ao regime. Se o facto de o escrever já colocava em perigo a vida do autor, publicá-lo era colocar a cabeça no cepo. A coragem necessária para pôr em letra redonda – “a forma material máxima que se pode dar a um escrito” como referia Miguel Torga – não existiu em muitos portugueses que viveram essa época, tanto assim que ainda hoje os relatos desses tempos são poucos e praticamente memórias saídas na última década, muitos anos depois do 25 de Abril de 1974. Os sucessivos diários de Torga colocaram ao alcance do leitor uma reflexão sobre a situação portuguesa e o testemunho sobre realidades sociais e económicas que ninguém comentava, poucos criticavam ou ainda menos se opunham. Que o escritor registava em páginas de acusações directas às autoridades ou por meio das descrições do atraso de Portugal face a outros países, em livros custeados pelo seu próprio bolso e que mal chegavam às livrarias eram bastantes vezes apreendidos ou banidos. Não era preciso Torga escrever a palavra liberdade para o livro entrar na lista negra, bastava ser lúcido nos seus apontamentos para incomodar. Nem que fossem sobre a cultura: “Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”.
João Céu e Silva

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