quinta-feira, 10 de abril de 2008

Sobre Gabriel García Márquez (o romance e a tentativa de filme)


O amor segundo García Márquez


Ele já tinha ganho o Prémio Nobel e estava dispensado de escrever a obra-prima que eclipsou "Cem Anos de Solidão". Gabriel García Márquez publicou "O Amor nos Tempos de Cólera" (publicado na Dom Quixote) em 1985. Se quiséssemos julgar um grande, um genial escritor, bastariam estes dois livros. Ou, como escreveu Thomas Pynchon num ensaio publicado no "N. Y. Times" em 88, "And - oh boy - does he write well". Como ele escreve bem. "Escreve com controlo apaixonado, de uma serenidade maníaca: a voz Garcimarquesiana que conhecemos da outra ficção amadureceu, encontrou e desenvolveu novos recursos, foi elevada a um ponto onde pode ser ao mesmo tempo clássica e familiar, opalescente e pura, capaz de elogiar e amaldiçoar, rir e chorar, efabular e cantar e, quando chamada a isso, descolar e voar (...)"
Contem com um grande escritor para reconhecer outro. Não foi apenas Pynchon, que por esse tempo era a voz do pós-modernismo e do experimentalismo na ficção americana, a apaixonar-se pelo Amor segundo G. Márquez. Os leitores apaixonaram-se pelo livro e leram-no com uma devoção que os amarraria ao autor. Para os amantes destes amantes, Gabo era perfeito. Eu li o livro numa noite e com o medonho sentimento de que teria uma última página. Um fim feliz e altamente implausível, como toda a história do romance, a do triângulo amoroso formado por uma bela mulher, Fermina Daza, e dois homens que a amam, Florentino Ariza e o Dr. Juvenal Urbino. No caso de um deles, amor eterno e inabalável que espera 51 anos, 9 meses e 4 dias pela sua consumação, a lua-de-mel de dois velhos a bordo de um barco nos rios das Caraíbas. O romance conta uma história em "flash-back", com aquele narrador omnisciente que conhecemos de outros livros do autor. Florentino apaixona-se por Fermina quando ambos são adolescentes e ele é um operador de telégrafo. O amor, platónico e epistolar, alimentado de olhares e recantos, de promessas e sonhos de futuro, é contrariado pelo pai dela, um viúvo e endinheirado negociante de mulas que aspira a encontrar melhor noivo e a fazer da filha uma princesa da sociedade. O "cliché" cor-de-rosa. Florentino, dado aos livros e aos poemas, leitor de Homero e de todo o bicho-careta que escreva versos e epigramas, é separado da sua Fermina jurando-lhe fidelidade e amor eterno, como nas novelas e outros escritos carregados do romantismo literário que ele tanto aprecia.
Virgem, sem pai, vivendo com a mãe, Florentino aspira e suspira até perder a virgindade num barco, violentado por uma mulher desconhecida que o arrasta para dentro de um camarote (e seguimos com a implausibilidade). Assiste de longe ao casamento da amada com um "bom partido", o cobiçado médico Juvenal Urbino, bem-nascido e bem dotado. Urbino é o contraponto de Florentino, um racionalista e homem de ciência, zeloso do progresso e combatente do obscurantismo local. Quer erradicar a cólera da cidade, uma cidade nunca mencionada pelo nome (uma especialidade do realismo mágico, a de dispensar o nome do lugar e interessar-se apenas pela passagem do tempo num lugar) e que é uma mistura das colombianas Cartagena das Índias e Barranquilla. O casamento produz vários filhos, navega os escolhos que cimentam a relação conjugal. Um afecto de casal feliz assente na plácida contratação de hábitos e interesses. Florentino anda pelo seu mundo fornicando mulheres às centenas, apanhadas na rede do seu coração vazio, como ele diz. Aponta os números num diário de amante obsessivo e metódico. Florentino torna-se o dono da Companhia Fluvial das Caraíbas que pertencera a um tio protector e é agora um homem importante e rico, como o velho Daza teria estimado. Um dia, Urbino morre perseguindo um papagaio num jardim tropical. Florentino está deitado com uma menina de 14 anos que prometera cuidar, pedófilo consolado aos setenta e tal anos, traidor da confiança alheia, e sente que a sua hora chegou. Despede a menina, uma criança bonita que se apaixonara por um velho (a implausibilidade...) e corre atrás de Fermina, que acaba por ceder e embarcar num fluvial cruzeiro romântico com o sempre-noivo.
Nada disto faz o menor sentido a não ser pela prosa e pela construção de García Márquez. Pela linguagem e a descrição. A técnica e a composição. O uso da metáfora e da alegoria, visível no título. Florentino tem toques de personalidade desprezíveis, e a pobre América Vicunã, a menina abandonada, mata-se. Urbino engana a mulher. Fermina é calculista e superficial. Nenhum destes três é perfeito numa história imperfeita. A perfeição vem de quem a escreve, e, oh boy! Nas conversas de "Cheiro de Goiaba", Márquez considerou que só existe uma obrigação para um autor, escrever bem. Por esta razão, o filme falhado que anda por aí tenta reproduzir uma história implausível. Fica-se pelos cenários naturais e os actores (e torna a menina América adulta, sem a matar). A linguagem do escritor, de fora do filme, deixou o livro de fora. E o livro é um dos mais subversivos romances que se escreveram até hoje (tão subversivo como a Lolita de Nabokov, com quem Márquez partilha um gosto "cultural" por ninfas).
Clara Ferreira Alves, in Única, Revista do Expresso

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