segunda-feira, 20 de abril de 2009

ContAR(TE) II - 10ºAno

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III
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Cinzento
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Eram já cinco da tarde e as nuvens plúmbeas tinham-se reunido em conselho e, berrando umas com as outras, rasgavam o ar com raios e violavam o som na terra. O palácio pugnava contra as intempéries do vento que assobiava por entre os galhos das árvores nuas, flagelando os seus troncos. Os telhados de colmo eram esfolados pela tormenta e pelo granizo que os queimava, e por todo o lado cheirava a medo.
“ É a morte”- pensou o Czar - “ Estranhamente cheira a morte”. Estava naquela sala há já duas horas, pálido, nervoso, deambulando sem rumo, bêbado de ansiedade, à espera do filho que estava para nascer.
Ouvia, ao longe, gritos lancinantes e quase que podia sentir a respiração das criadas que corriam de um lado para o outro, transportando consigo toalhas e água quente. A parteira havia chegado duas horas antes, vestindo chuva, carregando nas suas mãos esperança. Tinha-lhe comunicado que seria uma entrega difícil, que Natasha, apesar de bela e jovem, não tinha corpo de mãe, mas que tentaria fazer tudo ao seu alcance. E depois partira em direcção ao quarto senhorial.
Inesperadamente, silêncio. O Czar sentia os seus melífluos tentáculos a agarrarem a atmosfera à sua volta, a agarrarem o palácio de surpresa. Tossiu e os tentáculos recuaram. Só então se atreveu a sair da sala e ir ter com a sua esposa. A porta estava entreaberta e deixava escapar para o corredor sombrio, luzes bailarinas, diáfanas.
Entrou e inalou um odor acre, adocicado, a sangue. Na cama, com os lençóis ensopados em dor e seiva rubra, estava Natasha. Suada, segurava nos braços um pedaço de si que a faria imortal. E sorria. Sentiu-se a sorrir também e correu para junto dela, beijando-a levemente na fronte (com cuidado), afastando-lhe, com ternura, os cabelos escorregadios e húmidos.
“ É uma menina” - disse-lhe numa voz cansada, feliz. O Czar afastou então a manta que cobria a criança e aflorou-lhe aos lábios um sorriso. Era bela!
“ Chama-lhe Bella, Alexei. Chama-lhe Bella”- pediu-lhe Natasha, antes de adormecer, derrotada pela perda de algo seu, pelo ganho de algo também seu. Alexei tomou Bella nos braços sem nunca deixar de sentir aquela essência de morte, de infortúnio. Mas estava feliz, desafiava a tormenta a derrotá-lo! Mas ele não sabia (não podia saber) que, um mês depois, iria ser derrotado e a sua alma apunhalada e enterrada juntamente com o cadáver frio da sua esposa, enquanto o seu corpo permaneceria sentado no trono, a governar. Foi nesse mesmo dia que, tomado de um ciúme louco, impôs a lei da clausura à felicidade que proibia todas as formas de alegria, cor e música. A partir desse dia, Minsk seria uma cidade difusa, cinzenta e morta, tal como a sua Imperatriz.

Bella corria, fugia da sua aia Irina que lhe vinha infligir (como sempre) duas horas de serviço religioso. Estava cansada disso e por isso fugia. Ouvia os seus passos ecoarem solitários nas galerias pardacentas do palácio, apressados, perdidos, e acabou por entrar na biblioteca. Parou para respirar. Ali Irina não a encontraria. E respirou, apoiando as mãos nos joelhos. A pele alva polvilhada de sardas estava agora tingida de um rosa tímido e o cabelo, em desalinho, formava uma auréola ruiva em redor do seu rosto. Ali, Irina não entrava, pensou. A biblioteca era um local sinistro, envolto em faúlhas de mistério e lendas proibidas.
Estava já mergulhada num mundo quimérico, quando ouviu passos (vazios) e, sobressaltada, pousou o livro. Estava alguém ali, estava alguém na biblioteca e esse alguém estava a vir na sua direcção. Esperou em suspenso até que, virando a esquina, esse alguém se revelou. Vestia cinzento, como todos, e vinha de cabeça baixa.
“ É só um funcionário” pensou, respirando fundo. Foi então que o funcionário ergueu a cabeça e cravou os olhos nos dela, sorrindo.
Eram os olhos mais bonitos que Bella tinha visto! Castanhos, com pinceladas de ouro e brilho, olhos que sorriam, olhos que transbordavam luz e calor: vida. Nunca tinha visto uns olhos assim tão humanos, tão quentes (pareciam que queimavam), estava habituada a olhos empertigados, ausentes, nostálgicos, frios. E o sorriso era lindo, também, limpo, sincero como nunca tinha visto. Era contagiante e deu por si a sorrir tolamente.
“ Olá…” - disse-lhe ele - “ estás perdida?”
“ N…não” - conseguiu articular. Aclarou a voz - “ vim só consultar um livro”
“ Sabes ler?” - inquiriu espantado. Mas rapidamente o seu olhar se desviou para o monograma que estava gravado no vestido cinzento de Bella “ Oh! Sua alteza, não tinha percebido, desculpai!” e fazendo uma leve vénia levou a mão da princesa aos lábios.
“ Não faz mal. Nunca te tinha visto, quem és?”. O rapaz olhou para cima, endireitando-se, no entanto, a sua mão acariciou a dela antes de a largar, ao de leve. “ Guiseppe de Génova. Ao seu serviço, senhora”.
Não sabia bem porquê, mas Bella simpatizou imediatamente com o rapaz, talvez por causa do brilho do seu olhar, talvez pela sua voz doce.
E a partir desse dia, desse encontro fortuito, encontravam-se sempre os dois na biblioteca e Guiseppe levantava-lhe do coração o véu soturno que o oprimia e falava-lhe do mundo para lá das fronteiras de Minsk. Sem se darem conta, como o rio que segue o seu curso natural, foram entregando um ao outro a amizade e mais tarde o amor.

Foi num dia de trovoada que o Czar a chamou. A sala do trono estava afogada em desespero e angústia, com um rei de pedra erguendo-se no meio dela, contemplando a única réstia fugaz de cor do palácio, um quadro da sua tão amada esposa que agora, um pútrido cadáver gélido, o arrastava para o abismo dos loucos. Fazia dezassete anos desde a morte da Imperatriz e era por isso que tinha sido chamada, era por isso que falava com seu pai.
“ Pai” - perguntou-lhe - “Porque é que tudo tem de ser tão triste?”
O Czar virou-se, furioso, e a sua postura impávida tinha desaparecido - “ Isto é assim porque tem de ser, isto é assim porque eu quero e tu não és ninguém, não és nada, para questionares! Agora sai!”
E ela saiu, com as lágrimas pugnando contra as pestanas, desejosas de cair.
Motivados por isto, Bella e Guiseppe, uma semana de pois, saíram para as ruas de Minsk com um bandolim e dançando, rindo e cantando (de mãos dadas) com o espírito tolo de quem está apaixonado, dirigiram-se para o centro da cidade.
Das estreitas veias por onde passavam, assomavam caras pálidas à janela, rostos surpreendidos, assustados, felizes. Mas cedo esse gáudio foi ensombrado pelos soldados que, como bestas cegas, perseguiram os dois amantes até os encurralarem na praça pública. À princesa, com fria indiferença, agarraram-lhe o braço, mas a Guiseppe rasgaram-lhe a camisa quando o apanharam, socando sucessivamente, num fluxo louco, o rosto e o torso do rapaz, abrindo-lhe (a navalha) caminhos de dor no corpo, rios rúbeos de violência e no fim (já saciados) levaram-no para a forca. Passaram-lhe a corda pelo pescoço viscoso de sangue e, sem lhe darem tempo, abriram o alçapão sob o seu corpo.
Os segundos que se seguiram, aos olhos de Bella, demoraram séculos. O peso morto, que de repente se viu sem chão, a cair no nada; as vestes cinzentas, esquecidas a planarem à volta do corpo violado. Um esticão repentino, a corda tesa, dura, e o som horripilante da coluna a quebrar-se como quem quebra um copo, assim, facilmente. No fim, do rosto escorrido em sangue, o olhar vítreo, apagado, fixado, um olhar de medo e de espanto.
Correu para junto dele. Correu para junto dele fugindo dos soldados que a aprisionavam. Sem pensar, guiada por tudo aquilo que tinha escondido no seu coração, Bella passou uma corda áspera à volta do pescoço e saltou para o vazio.
O mesmo som. O mesmo arrepio. A mesma morte.
E assim acabaram dois rebentos livres, mortos na praça pública, ele de vermelho pintado e ela de cinzento vestida com uma única rosa rubra adormecida nos cabelos. Um foco de cor e de dor para o mundo ver. Dois seres tenros, prematuramente ceifados, tão próximos um do outro (quase que se tocam, quando o vento os leva numa dança nupcial), mas ao mesmo tempo tão longe. Morreram por aquilo em que acreditavam.
Ana Cristina Graça, 10E
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IV
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Máxima Urgência
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Sentado na cadeira de rodas observava as sombras que via. Para ele o Mundo tinha-se tornado nisso: um conjunto de sombras e sons.
Rui tinha dezasseis anos, nasceu em Évora e lá viveu, até lhe ter sido diagnosticada uma doença degenerativa que lhe afectava o sistema nervoso. Todos os dias, pensava no dia em que veio a Lisboa pela primeira vez. Foi, talvez, o dia mais importante da sua vida ou, pelo menos, o mais decisivo. Nessa altura, tinha doze anos e tinha vindo a Lisboa para fazer uns exames que o Dr. Saraiva tinha pedido. Lembrava-se que tinha ficado confuso. Ouvia as senhoras de Évora a queixarem-se que demorava muito tempo a receber os resultados dos exames, mas Rui tinha recebido os resultados dos seus, poucas horas depois. Mal receberam os resultados, os pais quiseram regressar imediatamente a Évora, apesar da vontade do filho em querer ficar mais tempo para visitar a capital. Nesse mesmo dia, o Dr. Saraiva anunciou à família que Rui teria de voltar rapidamente a Lisboa para começar com tratamentos. Sofria de uma doença incurável, cujos sintomas poderiam ser minimizados com medicação. Agora percebia a pressa com que foram feitos os tratamentos, pois, a partir desse dia, tudo o que fazia, todos os exames e tratamentos tinham uma etiquetazinha vermelha que dizia “Máxima Urgência”.
Dias depois voltou para Lisboa, foi viver para casa de uma tia, D. Ana, dona de um hotel, numa movimentada rua da cidade. Apesar de todos os tratamentos, poucos meses depois, começou a deixar de sentir algumas partes do corpo. Foi brutalmente atirado para uma cadeira de rodas e, mais tarde, perdeu parte da visão, passando a ver sombras. Dois anos depois do diagnóstico, parou com os tratamentos.
A partir daí nunca mais voltou a sair do hotel da tia. Ao longo dos anos, as visitas de amigos e familiares foram-se tornando cada vez mais espaçadas até que deixaram de existir. Até os pais raramente o vinham visitar. Da varanda do seu quarto sabia o que se passava no Mundo e relembrava como era a sensação de se sentir vivo.
Acordava cedo e, com a ajuda da tia, sentava-se na cadeira de rodas e ia até à varanda. Ficava lá sentado até altas horas da madrugada. Ao longo do dia, ouvia o formigueiro de pessoas que passava na rua, fechava os olhos, inclinava a cara para receber o calor do Sol e ouvia… Ouvia a campainha da loja de fotografia, cada vez que entrava um cliente; ouvia os risos dos grupos de jovens sentados na esplanada do café; ouvia o barulho das árvores e dos pássaros; ouvia as pessoas a correrem de um lado para o outro, apressadas nas suas vidas citadinas. E aqueles momentos de calma em que ouvia faziam-no sentir um pouco mais próximo da vida que tinha em Évora, uma vida calma e em paz…
Rui odiava Lisboa. Odiava aquela pressa, a obsessão pelo tempo (ou pela falta dele); odiava etiquetazinhas vermelhas coladas nos cantos superiores direitos de processos e de documentos; odiava o modo como as pessoas tratavam os assuntos...todos com “Máxima Urgência”!
Para Rui a “Máxima Urgência” só destruía a vida das pessoas mais rápido. Se não fosse a “Máxima Urgência”, os exames demorariam mais tempo a chegar. Se não fosse a “Máxima Urgência”, ele teria vivido mais tempo em Évora. Se não fosse a “Máxima Urgência”, teria passado mais tempo com os seus pais. Se não fosse a “Máxima Urgência” teria conhecido Lisboa e o Mundo. A pressa do Mundo roubou-lhe tempo, roubou-lhe vida.
A ânsia com que as pessoas viviam a vida, a rapidez com que as pessoas passavam umas pelas outras na rua, sem prestarem atenção aos que as rodeiam, revoltavam -no.
Aquelas pessoas tinham tudo. Podiam ver, podiam movimentar-se, a maior parte delas tinha família e amigos que ainda se preocupavam com elas, mas viviam a vida a correr sem repararem no mundo em seu redor. Ele que, ainda jovem, tinha perdido parte da visão e não se conseguia mover, mesmo com essas dificuldades, ouvia e aproveitava o mundo, o máximo possível.
Aproveitava o mundo como podia: de manhã aproveitava o cheiro de pão quente, à hora de ponta aproveitava os risos apressados das crianças a correrem para a escola, no Inverno aproveitava o vento frio que lhe arrefecia o corpo… Aproveitava cada pedacinho de mundo como podia, porque o seu mundo tinha-lhe sido roubado, e tudo por culpa das etiquetazinhas vermelhas de “Máxima Urgência”.
Detestava quando a tia o obrigava a vir mais cedo para dentro, no Inverno, porque achava que o frio lhe fazia mal, pois, para Rui, a melhor coisa que ele podia aproveitar era a madrugada. A madrugada trazia-lhe recordações inesquecíveis de Évora, de quando se levantava cedo (ou seria deitar tarde?) para ir jogar futebol com os colegas da escola. Nessa altura, não havia pressa, nem “Máxima Urgência”, as coisas demoravam o tempo que fosse preciso e ninguém se preocupava com isso. Demorasse o tempo que demorasse. Não havia obsessões com o tempo, ou com etiquetas inúteis, a vida demorava o tempo que a própria vida decidisse, e não o tempo que o Homem decidia que a vida tinha de demorar.
Um dia, o rapaz que sonhava com Évora e odiava o tempo e Lisboa deixou de aparecer na varanda. Ao fim de quatro anos de exames e tratamentos, todos com “Máxima Urgência”, a doença levou a melhor, e Rui morreu.
Mas a agitada rua de Lisboa nem notou o seu desaparecimento. Todos estavam demasiado ocupados nas suas vidas citadinas para reparar que, todos os dias, durante quatro anos, um rapaz ficava a sentir a rua da sua varanda, e muito mais ocupados estavam para reparar que esse rapaz nunca mais aparecera à janela.
Apesar de ninguém reparar no rapaz ou na rua, a rua continuava ali com as suas qualidades, à espera que alguém a descobrisse, como Rui a descobriu, porque, apesar de estar quase submersa pela cidade e pelo seu estilo de vida agitado e turbulento, a rua pode ser um sítio calmo e pacífico.

Rita calisto, 10A
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V
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O velho silêncio
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Aquela rua era provavelmente a mais movimentada, mas o que a enchia não eram os velhos cambaleantes, nem as velhas caprichosas, era antes aquele eco de silêncio que se difundia e passava incólume pelas casas. Apareceu de repente à minha frente Joaquim Albernaz da padaria, dois ou três dias depois da tragédia, contando tudo o que se tinha passado na minha ausência.
– Foi o Faustino que fez luz! Que aquele velho nunca foi muito de grandes conversas aqui com a gente da padaria, isso já eu sabia. Agora que o velho era mágico… Ele até podia ter dito, que aposto que muita gente pagava para assistir àquelas maluquices. Este velho vai morrer sozinho, que não há maneira de conversar com ele, menina. Então, depois da morte da mulher é que piorou. Nem o dom que Deus lhe deu soube partilhar com a gente.
Era uma das poucas raparigas daquela rua e sempre achei os velhos seres enigmáticos por fazerem segredo das coisas mais insignificantes, talvez pelo receio de que os liberte daquela solidão a que, a pouco e pouco, se vão habituando. O senhor Albernaz foi trabalhar e eu continuei então pela rua abaixo. Ao longe, lá estava o velho Faustino, ali, quieto, enquanto o silêncio se sentava à sua frente. Parecia que a dor o consumia e os segredos o sufocavam ao longo dos dias que ali permanecia, sem nunca conversar com ninguém.
No dia seguinte, já o sol tinha nascido, quando olhei através da janela. Lá estava o velho, outra vez, imóvel e tranquilo. Desci as escadas e arrisquei tentar falar com ele, na esperança de que, sem querer, algum segredo fosse revelado naquele momento. Da sua boca saíam palavras doces, mas o tom de voz denunciava a amargura que sentia e que o remetia para a sua solidão. Perguntei-lhe então se sabia alguma coisa sobre uma luz que tinha aparecido há alguns dias atrás.
Faustino apenas afirmou:
– Desde que a Laurentina morreu que já não trovoava nesta cidade… E ela sempre dizia que a trovoada é ira dos mortos.
Com medo que mais alguma palavra lhe escoasse pela boca, o velho fechou-se, de novo, no seu silêncio. De súbito, o arco--íris revelou-se no horizonte e uma lágrima brotou da sua face enrugada. Neste momento, os seus olhos falavam. Faustino parecia perder-se no amor que ainda sentia pela vida e, vendo a amargura a arder, afastou-se e caminhou, caminhou numa ida sem fim.

Maria Santos, 10A
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VI...
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Parada
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- Senhoras e senhores, convosco, o incrível, o inigualável, o soberano Bernard.
Cigarro na boca, sentada ao espelho. Cigarro não já na boca, no cinzeiro. A mão na gaveta, à procura do seu bigode. Uns segundos, uns minutos.
- Senhoras e senhores, o fantástico domador de bestas.
Uma ponta de pincel, um risco na pestana direita, um retoque nas bochechas.
- Madame Sullimann, minha bela, estará surda? Chamei Bernard, o magnífico… Mas vejo que está pronta, ou deveria dizer pronto?
Deu um sorriso escondido no chapéu que tinha na cabeça. Levantou-se, cigarro na boca, cigarro não já na boca, outro mais no cinzeiro. Ouviu.
- Senhoras e senhores, Bernard, o soberbo.
Abriu a cortina e atirou a mão para a sua pose. Olhou em volta, os focos impediam-na de ver a plateia, mas conseguia sentir-lhe o cheiro a êxtase, os sons de espanto ao abrir da jaula. Um som de temor, um atenuar da lucidez ao abrir da jaula. As cortinas tornaram-se negras, os palhaços borraram os sorrisos. A Fera, quieta, num jogo de paciência, com um riso abafado. A Fera numa luxúria e esplendor que levam um homem à loucura.
Um movimento após outro, uma resposta atrás de outra. Os olhares, silenciosos, provocadores. O crepúsculo já no horizonte e a plateia num alvoroço. Os olhos dele a desvanecerem, os da Fera, incansáveis.
(Um brinquedo no palco, uma marioneta quase destruída, então!)
Uns segundos, uns minutos e o chicote no chão, a fronteira a ruir. Um sopro gélido que só se sente no último susto, no último momento. A Fera, permanecia altiva, confiante, desejante de o ver rebaixar-se; e os olhos dele não podiam mais desviar-se daquele poço de loucura. Assim, caiu como quem flutua na água, à espera de um salvamento apertado, arriscado, submetendo-se a todo o seu poder. E os palhaços invadiram o palco, e, com eles, as bailarinas, trapezistas, contorcionistas, numa algaraviada. O público gritava e dançava com a parada. Deleitava-se com o espectáculo e contorcia-se de prazer. E Bernard deitado, e a Fera, de olhos encantadores, oferecia a face aos seus lábios.

Ana Luísa Gomes, 10E
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VI

VII
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Uma retrospectiva do sentido da vida
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-"Sabes que as luzes acabarão por te levar a casa!"
-"Que dizes, irmão?"
-"Nada."
-"Nunca dizes nada."
-"Não tenho tempo para o fazer."
-"Eu arranjo-te."
-"Não pode ser, estou ocupado."
-"A fazer o quê, irmão?"
-"Observando as pessoas. Procurando um sentido para a vida."
-"Oh meu velho amigo, não te preocupes com isso... Eu ofereço-te um pouco do meu, queres?"
-"Do teu quê? Do teu sentido de vida? Não quero, aposto que é cá um cliché..."
-"Que dizes?"
-"Nada."
-"Ai não, desta vez disseste alguma coisa!"
Caminham clandestinos do tempo, passeiam-se aqueles que procuram algo para fazer e não percebem que a beleza daquele lugar é suspender os problemas do quotidiano. Onde tudo resplandece no infinito.
-"Olha-me aqueles dois?!"
-"Que tem, irmão?"
-"Esses não andam à procura do sentido da vida de certeza..."
-"Se calhar já o encontraram."
-"Porque é que eu não encontro o meu? Já estive mais perto, sabes... Estive tão perto, que pensei até tê-lo encontrado."
-"O que aconteceu irmão?"
-"Fugiu."
-"Para onde?"
-"Não sei!"
-"Por que fugiu?"
-"Deixei-o escapar."
-"Porquê, irmão? Era algum pássaro?"
-"Não, meu pateta. Era platónico."
-"E por isso fugiu?"
-"Não, fugiu, porque eu não me entreguei por completo. Porque o ignorei e assumi como garantido."
Outros vão passando. Garantindo a sua presença num jardim que acolhe quem precisa de um pouco de paz e harmonia. De luz na sua vida. De esperança.
-"E aqueles, irmão?"
-"Quais?"
-"Os que se abraçam e caminham de mãos dadas."
-"O que é que tem?"
-"O que é que achas, irmão?"
-"Não sei, diz-me tu."
-"Eu cá acho que descobriram a alegria do mundo. "O sabor das amoras."
-"E o que é isso?"
-"O que é isso, irmão?"
-"Sim, o que significa?"
-"Para mim?"
-"Pode ser..."
-"Para mim, irmão, transmite-me o sentido da vida."
Depois desse dia, escreveste-me uma carta, irmão. Tinhas encontrado o sentido da vida. Tinhas finalmente encontrado a alegria do mundo, "o sabor das amoras" que há tanto aguardavas por saborear. Não a li. Ainda.
Faz hoje um ano que me fugiste, irmão. Um ano que deixámos de ensinar a nossa perspectiva de vida um ao outro. Que deixámos de nos abraçar, de caminhar de mãos dadas, em espírito que fosse. Ainda o faço, sabes?"
"Meu amigo, descobri a alegria do mundo. E esteve sempre tão perto.
Obrigada por seres o sentido da minha vida."
Obrigada, irmão, por me teres demonstrado o bem que as pessoas fazem. A paz que elas transmitem. A ajuda que prestam. Obrigada.
As luzes acabaram por me guiar a casa, irmão.
Ana Catarina Monteiro, 10E

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