quinta-feira, 2 de abril de 2009

Livro(s) do mês - Abril

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As velas ardem até ao fim, Sándor Márai

Um pequeno castelo de caça na Hungria, onde outrora se celebravam elegantes saraus e cujos salões decorados ao estilo francês se enchiam da música de Chopin, mudou radicalmente de aspecto. O esplendor de então já não existe, tudo anuncia o final de uma época. Dois homens, amigos inseparáveis na juventude, sentam-se a jantar depois de quarenta anos sem se verem. Um, passou muito tempo no Extremo Oriente, o outro, ao contrário, permaneceu na sua propriedade. Mas ambos viveram à espera deste momento, pois entre eles interpõe-se um segredo de uma força singular...
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Sándor Márai (n.1900, Hungria) passou um período de exílio voluntário na Alemanha e em França durante o regime de Horthy, nos anos 20, até que abandonou o seu país emigrando para os EUA, em 1948, com a chegada do regime comunista. A subsequente proibição da sua obra na Hungria fez cair no esquecimento quem nesse momento era considerado um dos escritores mais importantes. Foi preciso esperar até à queda do regime comunista, para que este extraordinário escritor fosse redescoberto no seu país e no mundo inteiro.

1 comentário:

auxília disse...

Deixo ficar um excerto deste livro que particularmente me agradou por constituir um momento notável de reflexão sobre a amizade. Este momento é parte do diálogo entre os dois amigos que já não se viam há mais de quarenta anos, mas pode igualmente ser um "diálogo" com cada um de nós. Espero que seja uma boa motivação para a leitura de "As velas ardem até ao fim". Boa leitura!


- Era bom saber - continua, como se discutisse consigo próprio - se existe amizade realmente? Não me refiro àquele prazer ocasional que faz com que duas pessoas fiquem contentes porque se encontraram, porque num determinado período das suas vidas pensavam da mesma maneira sobre certas questões, porque os seus gostos são semelhantes e os seus passatempos iguais. Nada disso é amizade. Às vezes, chego a pensar que essa é a relação mais forte na vida... talvez por isso seja tão rara. E o que há no seu fundo? Simpatia? É uma palavra imprópria, sem sentido, o seu conteúdo não pode ser suficientemente forte para que duas pessoas intervenham em defesa um do outro nas situações mais críticas da vida... apenas por simpatia? Talvez seja outra coisa?... Talvez exista uma pitada de Eros no fundo de todas as relações humanas? Aqui, na solidão e na floresta, enquanto tentava perceber todas as questões da vida, visto que não tinha outra coisa para fazer, por vezes pensei nisso. Naturalmente, a amizade não tem nada a ver com a inclinação doentia de algumas pessoas que procuram uma satisfação disforme com pessoas do mesmo sexo. O Eros da amizade não precisa do corpo... longe disso, incomoda mais do que o excita. Porém, não deixa de ser Eros. Eros está no fundo de todos os afectos, de todas as relações humanas. Sabes, li muito - diz como quem se justifica. - Hoje em dia escreve-se com muito mais liberdade sobre isso. Li e reli Platão também várias vezes, porque na escola ainda não o tinha percebido. A amizade, pensava eu — e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campesre —, é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos. É curioso, os animais conhecem-na também. Existe amizade, altruísmo, solidariedade entre os animais. Um príncipe russo escreveu sobre isso... já não me lembro do nome dele. Há leões e galos bravos, criaturas de todo o género que tentam socorrer os da sua espécie que se vêem em apuros, sim, vi com os meus próprios olhos que, às vezes, ajudam também aos animais de outra espécie. Notaste algo semelhante no estrangeiro?... Lá, certamente, a amizade é diferente, é mais avançada, mais moderna que aqui, no nosso mundo atrasado. Os seres vivos organizam-se para prestar ajuda mútua... às vezes, têm dificuldades em ultrapassar os obstáculos que enfrentam nas suas intervenções de auxílio, mas sempre há criaturas fortes, prontas a ajudar, em todas as comunidades vivas. Encontrei centenas de exemplos disso no mundo animal. Entre pessoas, vi menos exemplos. Para ser mais exacto, não vi nenhum. As simpatias que vi nascer entre pessoas diante dos meus olhos, acabaram sempre por se afogar nos pântanos do egoísmo e da vaidade. A camaradagem, o companheirismo, às vezes, parecem amizade. Os interesses comuns por vezes criam situações humanas que são semelhantes à amizade. E as pessoas também fogem da solidão, entrando em todo o tipo de intimidades de que, a maior parte das vezes, se arrependem, mas durante algum tempo podem estar convencidas de que essa intimidade é uma espécie de amizade. Naturalmente, nesses casos não se trata de verdadeira amizade. Uma pessoa imagina - e o meu pai entendia as coisas dessa maneira - que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal? E se um amigo falha, porque não é um verdadeiro amigo, podemos acusá-lo, culpando o seu carácter, a sua fraqueza? Quanto vale aquela amizade, em que só amamos o outro pela sua virtude, fidelidade e perseverança? Quanto vale qualquer afecto que espera recompensa? Não seria nosso dever aceitar o amigo infiel da mesma maneira que o amigo abnegado e fiel? Não seria isso o verda¬deiro conteúdo de todas as relações humanas, esse altruísmo que não quer nada e não espera nada, absolutamente nada do outro? E quanto mais dá, menos espera em troca? E se entrega ao outro toda a confiança duma juventude, toda a abnegação da idade viril e finalmente oferece a coisa mais preciosa que um ser humano pode proporcionar a outro ser humano, a sua confiança absoluta, cega e apaixonada, e depois se vê confrontado com o facto de o outro ser infiel e vil, tem direito de se ofender, de exigir vingança? E se se ofende e grita por vingança, era realmente amigo, o traído e abandonado? Vês, dediquei-me a essas questões teóricas quando fiquei sozinho. Naturalmente, a solidão não me deu resposta. Nem os livros deram resposta perfeita. Nem os livros antigos, os estudos dos pensadores chineses, hebreus e latinos, nem os modernos que falam sem rodeios, mas dizem sobretudo palavras e não a verdade. Mas, afinal, há alguém que, alguma vez, tivesse dito ou escrito a verdade?... Reflectia muito sobre isso também, quando um dia comecei a procurar na minha alma e nos meus livros. O tempo passava e a vida tornava-se cada vez mais opaca em redor de mim. Os livros e as recordações acumulavam-se, adensavam-se. E cada livro continha uma pitada da verdade e cada recordação insinuava que é vão conhecer a verdadeira natureza das relações humanas, porque nenhum conhecimento torna uma pessoa mais sábia. E é por isso que não temos o direito de exigir a verdade e a fidelidade absolutas daquela pessoa que um dia tínhamos aceite como amigo, mesmo que os acontecimentos tivessem demonstrado que esse amigo foi infiel.
- Tens toda a certeza - pergunta o convidado - de que esse amigo foi infiel?
Ficam calados por muito tempo. Parecem os dois pequenos na obscuridade, à luz da chama vacilante da vela; dois velhos encarquilhados que olham um para o outro, que quase se perdem na penumbra.
- Não tenho toda a certeza - diz o general. - Por isso é que estás aqui. Estamos a falar sobre isso.
Recosta-se na poltrona, cruza os dois braços com um movimento tranquilo e controlado. E diz:
- Porque existe a verdade baseada nos factos. Aconteceu isto e aquilo. Aconteceu coisa e tal. Nesse ou naquele momento. Não é difícil averiguar isso. Os factos falam por si, como se costuma dizer, a caminho do fim da vida todos os factos são reveladores e gritam mais alto que os réus submetidos à tortura. Afinal, tudo aconteceu e não podem existir equívocos. Mas, às vezes, os factos são apenas consequências deploráveis. Uma pessoa não peca com aquilo que faz, mas com a intenção, com a qual comete isto ou aquilo. A intenção é tudo.

Sándor Márai, in “As velas ardem até ao fim”