segunda-feira, 15 de março de 2010

Poetas e Poéticas II

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Por José Rui Teixeira...

Teixeira de Pascoaes
[1877-1952]
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Sempre que regresso a Pascoaes, sinto-me de regresso aos caminhos, aos trilhos que rasgam os montes, a uma realidade híbrida que corremos o risco de confundir com o “país real”, mas que perpassa os lugares, as pessoas, que habita uma aragem que vagueia pelos antigos povoados, pelos bosques a que perdemos o nome, pelos trilhos a que perdemos o rasto, pelas serras e planícies que em Portugal estão profundamente impregnadas de uma qualquer vertigem de mar.
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Pascoaes, o Poeta, é um “lugar”. O seu pensamento poético, traduzido não apenas em poemas, é algo telúrico, profundo, ancestral; simultaneamente étnico e universal, com a cor de punhados de terra ainda misturada com raízes e uma longínqua sensação de maresia; simultaneamente granítico e penhascoso, anímico e imaterial. Pascoaes, o Poeta, é um “lugar” demoradamente exposto ao horizonte desenhado pelo Marão; excessivamente nocturno, vagamente iluminado pela escassez própria da luz nas noites de inverno; algo profundamente entregue ao silêncio das mãos nos trilhos obscuros do alfabeto; ele, o Poeta, é um “lugar” insólito e misterioso, espectral e fantasmático, infinitamente próximo porque interior e interior por uma espécie de cartografia de comunhão com tudo o que emerge da terra na direcção do sidéreo rumor das estrelas.
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A sua poesia, tudo o que lhe escorria das mãos, é um dos mais impressionantes tesouros do património cultural e espiritual dos portugueses. Nela se desenha o mapa da nossa identidade, o esquisso de um futuro a cumprir, a descrição anímica e nevoenta da Saudade que é, nas palavras do Poeta, “A vida dum novo Sentimento.../ A nova Religião adivinhada,/ Por ignoto sentido, que alvorece,/ No mais remoto e fundo de nós próprios”. Metáforas de uma Portugalidade que se há-de cumprir na Era Lusíada. Pascoaes sabia-o no seu quarto – “No meu quarto sombrio onde medito, a sós” –, donde espreitava, ao longe, a montanha – “Lá, na Montanha, a existência é quietação, meditação, sonho vago em que a alma se dispersa, abrangendo o céu e a terra”.
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Jacinto do Prado Coelho disse que Pascoaes “foi português, amante e interprete da terra portuguesa, com suas fontes, seus outeiros, seus caminhos, suas «alminhas» e seus regatos murmurosos”. Esse Portugal que Miguel Torga disse “assombrado, patético, que o padre benze e a bruxa defuma, com ex-votos nas sacristias, demónios nas encruzilhadas, calvários, ermidas e nichos alumiados, que só quem teve a fortuna, como o Poeta, de nascer e ficar na aldeia, junto da natureza e do povo, merece e conhece. Para esse Portugal de viagem e torna-viagem, de adeuses e expectação, de desejo e lembrança, de Deus e de Satã, que pulsa ainda ao ritmo das seivas e dos sinos, e mede o tempo no relógio das estações e dos astros, sistematizou Teixeira de Pascoaes uma das mais audaciosas interpretações anímicas. A ancestralidade e o destino colectivo plasmados no condão de uma palavra. A saudade a crismar o mistério de uma raça perpetuamente a morrer e a ressuscitar. A pátria num estado de alma. Mas é como seu verbo encarnado, caudaloso, sem poder escapar a si próprio, que eu o amo e o futuro certamente o amará”.Como escreveu Jaime Cortesão, em Portugal, a terra e o homem: “Depois atinge-se Amarante debruçada sobre o rio, vila antiga e solarenga dum santo e dum poeta, de São Gonçalo e de Teixeira de Pascoaes. Poetas como este, por vezes mais que os santos, santificam a vida”.
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Quem és tu? De onde vens?
Na tua fronte
Paira o vago crepúsculo infinito
Da distância...
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[...]
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Caminhante nocturno, erma figura,
Gerada no silêncio e na tristeza...
Ó luso peregrino da Aventura,
Atrai-me a tua voz enlouquecida!
O teu próprio delírio me seduz...
Essa atitude anímica e nevoenta,
Que toca nas estrelas, onde a luz,
Para voar, voar, se veste de asas.
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Há nas tuas palavras um abismo.
Ouvindo-as logo sinto uma vertigem,
E, em sobressalto, chora e se lastima
O que, em mim, é vedado, oculto e virgem.
A parte indefinida do meu ser
Ama a sombra espectral em que desvairas...
E nem, ao menos, posso compreender
Esta força amorosa que me leva
Para a tua loucura!
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Marános [1911]

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